O Tamanduá do Guamá - Por Arthur Ribeiro
Publicado originalmente no blog O Teatro Como ele É
https://oteatrocomoelee.wordpress.com/2018/12/11/o-tamandua-do-guama/
Montagem Teatral: Cuidado com o tamanduá-bandeira
Montagem: Espaço Cultural Nossa Biblioteca.
Arthur Ribeiro[1]
O título rimado que dou a essa postagem não é à toa. Afinal, foi uma gostosa sensação lúdica, realizada, sobretudo, por meio das palavras e dos jogos com elas, o que ficou em mim após assistir Cuidado com o tamanduá-bandeira, espetáculo realizado pela equipe de facilitadores, voluntários, crianças e jovens do Espaço Cultural Nossa Biblioteca. Sendo eu também um diretor de grupo de teatro com crianças/adolescentes, compreendo as limitações técnicas e os eventuais descompassos da encenação, e convoco a mim mesmo a um olhar generoso, despido de expectativas; sou, assim, levado a perceber que elementos do espetáculo me enlaçam com a dinâmica da vida infantil, independentemente de sua importância para o conjunto da obra. E, talvez por eu ser também um profissional apaixonado da área da linguagem, são os trocadilhos, as confusões, as surpresas, os exageros e as brincadeiras linguísticas que me fazem sonhar mais demoradamente.
Logo no início, a língua se mostra um elemento fundamental para o jogo cênico, quando um problema de compreensão de "usina atômica" gera um retardo no entendimento da mensagem do ministro, cuja urgência acentua o efeito cômico. Aqui, o que permite o humor é tanto a ordem sintática que conecta atômica como adjunto adnominal de usina quanto a construção morfológica de atômica, em que o a inicial não é artigo, mas componente do radical da palavra, além do problema interacional de que o conceito de usina atômica obviamente não faz parte do repertório linguístico da rainha. A percepção da sagacidade da piada parece motivar até sua repetição, que ocorre no início do ato seguinte, dessa vez com "greve geral"; mas o efeito não é o mesmo, em parte, talvez, pela gratuidade da repetição, em parte pelo sintagma não compartilhar a mesma estrutura linguística anterior.
O título ostentado pelo ministro Adolfo é outro exemplo de jogo linguístico, dessa vez pelo exagero e pela combinação: o longuíssimo nome do cargo que ocupa, marcado por assonâncias, lembra os trava-línguas infantis, usados como desafios para testar a habilidade de articulação e raciocínio dos incautos, que normalmente se enrolam algumas vezes antes de finalmente conseguir dizer a frase, gerando muito riso e encarnação. Algo parecido ocorre na cena do casamento, em que é também longo e complicado o texto dito pela Cigarra, que dirige a cerimônia.
Falando na Cigarra, a própria presença dela é testemunha de outro procedimento que também põe a linguagem em primeiro plano: a intertextualidade. A conhecida fábula "A cigarra e a formiga" é o mote para o surgimento da personagem, porém com uma interessante releitura que lhe inverte o sentido: enquanto, na fábula, a cigarra era a representação simbólica da lassidão, da preguiça e da improdutividade, aqui ela aparece com grande destaque dado pelas próprias formigas, que admiram sua voz e sua performance.
É também pela voz da Cigarra que surge outra piada linguística, talvez a mais interessante do espetáculo, quando ela lamenta o falecimento de seu marido, o "cigarro", que morreu queimado e do qual ela encontrou apenas a bagana. Aqui, a brincadeira com a palavra, em que o ofinal é vogal temática em uma e passa a desinência de gênero na outra, é outro recurso muito presente nas interações infantis, pelo qual as crianças ironizam, se esquivam de perguntas inconvenientes ou simplesmente brincam, descobrindo assim os padrões morfológicos da língua. No espetáculo, a ironia é ressaltada ainda pela estratégia de revelar aos olhos do público a própria bagana de cigarro esmagada, o que subverte ao máximo as imagens do signo linguístico e torna tudo ainda mais divertido. Imagino ainda o quanto uma piada aparentemente tão simples pode contribuir para a elaboração da defesa psicológica dessas crianças periféricas, em cujas realidades o uso de drogas, principalmente de álcool e de tabaco, é comum, e mesmo socialmente aceito, desde a adolescência...
Todas essas sedutoras brincadeiras de língua(gem) me permitem aproximar Cuidado com o tamanduá-bandeira de diversos autores da literatura infantil, como Sylvia Orthof, Eucanaã Ferraz e, em especial, José Paulo Paes, cuja obra (brilhantemente analisada por Ana Elvira Gebara no livro A poesia na escola) utiliza, dentre outros recursos, o intertexto, a comutação, as rimas e o absurdo como formas de seduzir o leitor infantil para a gratuidade e o prazer da poesia. É o que me parece mais promissor no espetáculo do ECNB, principalmente porque o enredo principal e suas possíveis leituras sociopolíticas não me parecem muito consistentes, a começar pela estranheza de discutir eleições e representatividade em um ambiente no qual os valores e hábitos da monarquia persistem do início ao fim, culminando inclusive com um casamento real (que pode ser lido até como a eterna conciliação dos oligarcas) ao qual o povo assiste bem passivamente.
Para finalizar, registro a alegria que foi ver o espetáculo sabendo que a direção geral foi da Alana Lima. Já faz algum tempo que construímos, ora mais, ora menos juntos, o sonho e a vontade de fazer arte com meninos e meninas da periferia, impactando as comunidades. O apoio, a rede de afetos que a Alana consegue para o seu trabalho, evidente no grande e diversificado público que compareceu ao Sesc Boulevard, é comovente. E mais ainda por ser um espetáculo no qual consigo, junto com as crianças do Guamá, alcançar a diversão em estado puro e voltar, eu mesmo, a ser criança.
12 de Dezembro de 2018.
[1]
Ator e professor de Português; Colaborador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.