O Teatro e as Caixas – Por Edson Fernando
Encaixotando as Lendas: Teatro de Caixas na Amazônia.
Caixa: Matinta
Caixa:
A Moça do Taxi
Caixa: O Fantasma do Casarão Bibi
Edson Fernando[1]
Experiências com o Teatro de Caixas se espalham pelo Brasil. O termo abriga uma série de experimentações que exploram a potência do objeto "caixa", isto é, a aura de mistério que envolve o olhar e desperta a curiosidade de um observador, instigando-o a descobrir o segredo que ela - a Caixa - pode abrigar. O projeto Encaixotando as Lendas - premiado pelo Programa Seiva da Fundação Cultural do Pará - elege este suporte para apresentar sua versão das lendas da Matinta Pereira, Moça do Taxi e do Fantasma do Casarão Bibi Costa. Agrega, portanto, à aura das caixas, o universo das narrativas fantásticas, das histórias de personagens reais que a imaginação popular se encarregou de imortalizar ao dar ênfase poética aos seus feitos sobrenaturais. O projeto nos entrega, desse modo, três caixas potentes visualmente e que me provocam a reflexão sobre este instigante modo de fazer teatro e teatro de animação.
Antes de compartilhar minhas impressões sobre o trabalho, no entanto, preciso dizer que tomo como parâmetro as experiências que desenvolvo no Coletivo de Animadores de Caixa, desde 2008. As experiências nesse Coletivo - principalmente ao lado do parceiro Aníbal Pacha e da influência direta da In Bust Teatro com Bonecos -cristalizaram procedimentos, modos de fazer e pensar o Teatro de Caixa; modos de poetizar a Caixa como um objeto performático. Não desejo fazer dessa experiência um marco teórico e categórico, mas simplesmente indicar de onde nascem minhas reflexões e inquietações com os trabalhos que pude conferir.
Fora das Caixas
O local escolhido para apresentação é a Praça Ver-o-Rio. Localizado às margens da baía do Guajará, o lugar me brinda com uma paisagem natural e sua aprazível brisa noturna. As três Caixas ficam posicionadas de frente pra baía, tendo ao fundo a arquitetura do Memorial dos Povos Indígenas. Esse dado é importante, pois revela que as três Caixas procuram se instalar próximo ao local que o público está habituado a assistir às apresentações artísticas. Um desejo, talvez, por se aproximar do espaço convencionalmente estabelecido para as apresentações de teatro e minimizar a intervenção que as Caixas poderiam causar na própria dinâmica do lugar se fossem instaladas, por exemplo, nos arredores da área de recreação das crianças.
No entanto, mesmo neste local mais "reservado", a visualidade das Caixas causa impacto e promove uma intervenção no cotidiano daqueles que passeiam por ali. O cenário que se instala é o seguinte: 1 - Uma casa de sapê com dois seres misteriosos no telhado de palha - esses seres lembram as velhas bruxas do imaginário popular. Ao lado dessa casa, um homem de maquiagem sombria e de vestes na cor preta: saia, blusa, colete e chapéu; 2 - Uma mulher vestida de branco ao lado de uma casa antiga que remete a duas imagens: um taxímetro antigo e a entrada de um cemitério; 3 - Um casarão antigo, tendo ao seu lado um homem negro, descalço, com roupas maltrapilhas - que me remetem a figura de um escravo. Com essa visualidade é impossível passar pelo local e sair indiferente.
Enquanto estive nas filas para conferir cada trabalho, pude perceber o misto de curiosidade, murmurinho e frisson de várias pessoas: "- O que é isso?"; "- É pra tirar foto?"; "- Tem que pagar?"; "- Eu posso ver também ou é só pra criança?"; "- Ai meu deus do céu!É história de terror. Não vou conseguir dormir sozinha!"; "- Tem visagem lá dentro, é?"; "- Não gosto desse negócio de visagem. Jesus é maior"; "- É só teatro. Não dá medo". "- Bate uma foto minha do lado da casa da bruxa". Essas e outras reações de abelhudice - tais como, fitar de longe por um bom tempo até criar coragem pra perguntar do que se trata pra, alguém que está fila; ou passear com os olhos vidrados nas Caixas e se distanciar virando o pescoço pra olhar pra trás - que pude flagrar, todas ocasionadas pela presença performática instaurada a partir da caixa e de seus acompanhantes.
Dentro das Caixas
As narrativas que conferi no interior de cada caixa apresentam suas versões para as lendas supracitadas. Arregimentam, também, técnicas e procedimentos diferentes do teatro de animação e até do teatro de sombras. Compartilharei minhas impressões sobre cada uma delas, com a ressalva de se tratar simplesmente da minha recepção da obra.
Comecei pela Caixa A Matinta, de Jeferson Cecim. Bonequeiro de mão cheia com uma trajetória reconhecida na cidade, Jeff é primoroso na confecção e acabamentos dos objetos cênicos da Caixa. Ele elege a técnica do teatro de sombras para contar a lenda da velha que se transforma em pássaro e que gosta de tabaco. Assim que pego os fones de ouvido e recebo a indicação para observar pela porta e janela da casa de sapê, me deparo, de imediato, com uma velha sentada no canto direito; meus olhos se fixam nela. A trilha sonora começa e, então, a mata que se impõe ao fundo passa a ser animada com as sombras dos personagens que vão me contando a história da Matinta Pereira. A movimentação das sombras ocorre numa velocidade intensa, dando-me a impressão de uma câmera nervosa que passeia, em determinados momentos, desgovernada pela paisagem. Meu olhar procura acompanhar essa intensa movimentação, mas se vê dividido entre a velha sentada em primeiro plano, no canto direito, e as sombras que correm ao fundo. Esse fato me faz perder muitos detalhes da narrativa estabelecida a partir do jogo com as sombras e, ao final, tenho a sensação que o boneco da velha em primeiro plano não estabelece relação direta com a história contada ao fundo. Como uma espécie de visagem, Jeff me acolhe do lado de fora da Caixa, indicando que o trabalho chegou ao fim.
A Moça do Taxi foi o segundo trabalho que fui conferir. E confesso que minha expectativa também era maior em torno desta Caixa. Talvez por ser uma lenda urbana bastante visitada e presente no meu imaginário, a expectativa era ver como a história seria abordada e levada pra dentro da Caixa. Biank Brito utiliza algumas traquitanas interessantes para animar e efetuar a manipulação dos objetos - sendo a técnica da manipulação com vara a que predomina (eu acho). Mas tenho dificuldade de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, pois eles me parecem não se assentar no roteiro estabelecido pela própria lenda. Mesmo compreendendo se tratar de uma versão da lenda, a relação entre o motorista do taxi e a falecida passageira me parecem ficar em segundo plano, cedendo espaço para mostrar outras coisas. Neste sentido, a proposta ganha por não se limitar a repetir a história que já conhecemos, mas me deixou com a sensação de frustração por não conseguir apreender o eixo sobrenatural que rendeu notoriedade a lenda, isto é, a peripécia que ocasiona o assombro do motorista ao descobrir ter transportado uma morta.
A lenda menos conhecida entre as apresentadas também foi a última e mais instigante Caixa que pude conferir: O Fantasma do Casarão Bibi. Tenho permissão para abrir as janelas do casarão e, então, assistir à narrativa que a caixa oculta assim que a sonoplastia inicia. A imponência do piso e a suntuosidade do lustre logo me fazem perceber que se trata de um palacete que certamente abrigou alguma família poderosa, alguma autoridade ou alguém de muito prestígio e riqueza. Meu olhar perscruta o espaço e se encanta com os detalhes que encontro dentro da Caixa. A luz se apaga, a escuridão toma o lugar e o tom de casa mal assombrada domina o ambiente e é reforçado pela clássica piscada de luzes dos filmes de terror. Quando as luzes se acendem novamente, a manipulação direta utilizada pelo jovem Caixeiro negro dá um contorno semiótico todo especial para o drama histórico contido na lenda do fantasma do casarão Bibi Costa: as mãos negras invadem lentamente a cena, abrem um fundo falso no piso e revelam que no porão do palacete encontra-se aprisionado um homem negro, atado aos grilhões da escravidão. As mãos habilidosas do manipulador repousam o homem agonizante numa maca. Posso acompanhar sua agonia por alguns instantes ali, sobre a maca, até que ele se levante, com dificuldade, e se dirija até a janela por onde observo a cena; ele se aproxima e estende a palma de sua mão, como se pedisse socorro; eu hesito, mas levanto meu dedo indicador e toco suavemente a palma de sua mão. As mãos negras do jovem Caixeiro recolhem, então, o homem agrilhoado, que retorna para os porões do palacete.
A experiência que esta Caixa oferece é forte e levou às lágrimas compulsivas a espectadora que assistiu antes de mim. O impacto da cena, no interior da Caixa, foi tão devastador para a espectadora, que o jovem Caixeiro negro lhe ofereceu dois prolongados abraços de acolhimento na tentativa de aplacar a catarse provocada pela experiência. Como eu seria o próximo a conferir o trabalho, acompanhei tudo isso de perto e, consequentemente, minha experiência foi alterada pelo ocorrido fora da Caixa, e isso me tocou profundamente.
E esse é, também, o ponto crucial que pretendo abordar no próximo tópico, isto é, o jogo cênico que a Caixa oportuniza quando o Dentro e o Fora se estabelecem numa relação dialética e complementar.
Dentro e Fora das Caixas: transbordamentos.
No primeiro tópico, iniciei destacando o impacto que a visualidade das Caixas causa no local das apresentações. O impacto é de ordem estética e já provoca o público a inferir sobre o que possivelmente encontrará dentro da Caixa. A visualidade, nesse sentido, coloca o tema do trabalho em movimento desde o primeiro contato estabelecido entre público, Caixeiro e Caixa. Trata-se de um transbordamento do tema. No Coletivo de Animadores de Caixa entendemos que ocorrem dois tipos de transbordamentos: transbordamento para a visualidade externa da Caixa; transbordamento para quem carrega a Caixa. Por esta via, a Caixa, portanto, torna-se um objeto performático e o ator-manipulador uma personagem. E, assim estabelecidos, ambos desenvolvem um jogo cênico com a participação ativa do público.
Quando começamos a exercitar esta via de trabalho com as Caixas, fomos percebendo alguns entraves técnicos e algumas convenções próprias do Teatro Lambe-Lambe[2] que prejudicavam o estabelecimento do jogo cênico proposto. O uso de fones de ouvido como recurso técnico para reprodução da trilha sonora, por exemplo, revelou-se um desses principais entraves, pois, praticamente sela o pacto ficcional convencional pelo qual o público se firma na condição de espectador e o Caixeiro se firma na condição de manipulador. Desse modo, por mais que o Caixeiro esteja caracterizado como uma personagem, sua ação orientando o público a colocar os fones - e, em alguns casos, só começar a assistir o interior da Caixa depois de iniciada a sonoplastia - impõe uma questão de ordem técnica que oblitera o possível jogo cênico estabelecido pelo transbordamento da fábula, do interior para o exterior da Caixa.
De certa forma isso se passa no Encaixotando as Lendas, pois, como já descrevi anteriormente, o transbordamento do tema está posto na visualidade do exterior das Caixas e na caracterização dos três Caixeiros. No entanto, não há nenhum jogo cênico desenvolvido entre os Caixeiros e o público; tudo fica concentrado e confinado na narrativa do interior da Caixa. Temos assim, uma Matinta e a Moça do Taxi que não interagem com o público na sua condição de personagens, mas sim como manipuladores que orientam o espectador a sentar e assistir ao trabalho, deixando de explorar todos os signos indiciais organizados na Caixa e no seu entorno.
No caso específico da Caixa do Fantasma do Casarão Bibi a questão é bastante emblemática, pois aponta para a grave situação racial que ainda vivemos no Brasil. Não por acaso eu friso que o trabalho é de um jovem caixeiro negro; não por acaso eu friso que são as mãos negras desse jovem caixeiro que manipulam diretamente a cena. Quando as mãos negras invadem a Caixa elas estabelecem um vínculo entre passado e presente, dentro e fora da Caixa, lenda e realidade de modo tão pungente que é impossível sair da experiência sem ao menos uma reflexão sobre o tema. Nesse caso, a lenda não se permite encaixotar, ela quer e precisa romper os limites da ficção, da fabulação e colocar a questão do drama sócio-histórico do negro no Brasil novamente como pauta de discussão. Indício disso é a preocupação de Geovane Serra com a recepção do seu trabalho quando o mesmo encerra a Caixa com a seguinte frase, em tom de desabafo: "- Espero ter passado a minha mensagem".
Destaco que é importante perceber que a frase em tom de desabafo, dita ao final, estabelece uma dialética vigorosa com o plano da realidade, articulando o dentro e o fora da Caixa, exatamente por ser dita por um negro que certa, e infelizmente, já deva ter sofrido algum tipo de preconceito, discriminação ou violação de seus direitos simplesmente por causa da cor da sua pele. E embora a abordagem de Geovane não explore toda a potência dessa dialética entre o dentro e fora da Caixa - problematizando, talvez, de modo mais contundente a situação de opressão e miséria vivida pelo negro ainda hoje no Brasil - ainda assim, o exemplo de sua Caixa mostra o potencial que pode ser explorado quando o tema transborda e começa a ser desenvolvido também fora da Caixa.
Eu, na condição de membro participante do Coletivo de Animadores de Caixa, acredito que os segredos que se ocultam dentro das Caixas ganham especial valor e sentido quando articulados para o plano da realidade, seja dos Caixeiros, seja do público. Por isso, acredito que é preciso desencaixotar as coisas, desencaixotar as vivências, desencaixotar a arte, desencaixotar a vida que se encontra, cada vez mais, encaixotada em padrões desprezíveis que tem nos levado a nos desconhecermos como seres humanos.
É preciso desencaixotar o Teatro de Caixas. E nesse processo de desencaixotar, talvez, reencontrar espaço para o jogo vivo entre Caixeiros e público, jogo pelo qual ambos se reconheçam na dimensão humana.
03 de Setembro de 2018.
[1] Ator, diretor e professor de teatro. Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO. Palhaço animador de festa de aniversário na primeira década do século XXI.
[2] O nome deste gênero de teatro está diretamente ligado ao suporte das antigas máquinas fotográficas Lambe-Lambe. O Teatro Lambe-Lambe é considerado uma caixa cênica em miniatura. Nela se apresentam espetáculos de curta duração que são assistidos, via de regra, por um espectador por vez através de um orifício pequeno localizado na sua parte dianteira. No Brasil, a cearense Ismeni Lima e a baiana Denise Di Santos são consideradas as artistas precursoras do Teatro Lambe-Lambe com a montagem do espetáculo "A dança do parto", ocorrido em 1989.
Ficha Técnica:
Encaixotando as Lendas: Teatro de Caixas na Amazônia.
Caixa: Matinta
Jefferson Cecim
Caixa: A Moça do Taxi
Biank Brito
Caixa: O Fantasma do Casarão Bibi
Geovane Serra
Produção:
Biank Brito
Edielson Goiano
Geovane Serra