O teatro que cabe na mão e transborda o coração – Por May Lopes
Montagem Teatral: O tempo que o tempo tem
Montagem: De Aníbal Pacha – Coletivo Animadores de Caixa
May Lopes[1]
"O tempo que o tempo tem", obra do artista Aníbal Pacha, integrante do Coletivo Animadores de Caixa, não se apresenta em palcos, mas em caixas. Pequenas, discretas e, à primeira vista, para quem observa de longe: silenciosas. No entanto, ao nos aproximarmos, ouvimos mensagens gravadas e narradas pelo radialista. O som despertou em mim uma memória afetiva construída com meus avós na ilha de Sirituba, popularmente conhecida como Trambioca, em Barcarena, onde por muitos anos o rádio do meu avô foi nosso maior comunicador e fonte de entretenimento, além da praia, até 2003 quando o "Programa Luz para Todos" ampliou o acesso à energia elétrica nas áreas rurais.
Dentro da caixa pulsa um universo inteiro de sensações, memórias e símbolos que também me remetem à nossa primeira casa na ilha: um lugar tranquilo, isolado, com uma única estrada ligando a praia ao porto, onde pegávamos o barco "popopô", que era a única forma de entrada e saída do local. Ao mergulhar na obra de Aníbal, após seu convite para olhar dentro da caixa, deparamos com uma cena silenciosa, talvez até sombria, dependendo dos olhos e das lembranças de quem vê: um homem idoso, sentado em uma cama suspensa por pedras, que mais parecem vértebras soltas de uma coluna desgastada pelo tempo ou, quem sabe, vestígios da própria solidão.
A cama, erguida por essas pedras, não toca o chão. Ela flutua no vazio, como a própria existência daquele homem, sustentada apenas por suas lembranças e pelos "trecos" acumulados ao longo da vida. Uma metáfora para a velhice, o cansaço do corpo, da alma, e a dúvida sobre ter ou não alcançado o que se desejava. Ao seu lado, um pequeno rádio. Ele veste roupas simples e uma sandália única. Há algo profundamente humano ali: a presença da ausência, o peso do tempo, a espera sem promessas.
A sandália única pode parecer apenas um detalhe, mas carrega um impacto simbólico e grita a incompletude daquela figura. Pode sugerir abandono, descuido, ou simplesmente solidão. Um corpo cansado que, apesar de tudo, ainda escuta, ainda espera... atenção, cuidado, ou talvez um amor. Um homem sozinho, ouvindo o mundo, enquanto o mundo o esquece.
A passagem de Aníbal pela escola nos convidou a espiar o invisível. Foi justamente nesse gesto íntimo, o de olhar por uma fresta, que a experiência se revelou potente e transformadora. Ao fim da vivência, o artista nos oferece uma folha e pergunta: "Quer mandar uma mensagem pra alguém?". Escrever a carta e depositá-la no espaço reservado para isso tornou-se um rito simples, porém carregado de poesia. "Um dia chega", disse ele a todos que viveram a experiência... E a partir dessa frase, nasce a espera, a esperança e a própria dúvida: será que um dia chega? Talvez a arte esteja justamente nesse gesto, confiar que alguém, algum dia, nos ouvirá.
Após essa imersão, a conversa com o artista lançou uma luz sobre todo o processo. Saber que cada caixa nasce de um caminho demorado, por vezes solitário e repleto de dúvidas, apenas reforça a beleza da obra. Aníbal nos mostra que o teatro também pode caber numa caixa. Como mensagem, ficou em mim a ideia de que a arte não é um espetáculo imediato, mas uma construção delicada, feita de tempo, escuta e resistência.
Mais do que uma apresentação, essa vivência foi um exercício de sensibilidade. Um convite para lembrar que até os menores gestos, como espiar por uma caixa ou escrever uma carta, podem carregar o peso e a beleza de uma vida inteira. Aníbal, com sua simplicidade quase despretensiosa, nos entregou mais do que uma instalação: nos ofereceu uma pausa e uma viagem no tempo. E, em tempos tão velozes, talvez essa seja a forma mais generosa de arte. Porque sim, "um dia chega". A arte chega. A mensagem chega. E, com sorte, ainda estaremos atentos para escutar.
18 de maio de 2025.
[1] Participante do minicurso "Crítica teatral e semiótica: estudos introdutórios" realizado pelo projeto TRIBUNA DO CRETINO;
Ficha Técnica:
O Tempo que o tempo tem
Concepção, Suporte e Atuação:
Aníbal Pacha
Voz em Off:
Marton Maues
Edição de Trilha Sonora:
Stúdio Solar dos Silva
Realização:
Coletivo de Animadores de Caixa
Apoio Cultural:
Ateliê 705 – Casa de Bonecaria