Para Onde Teu Orí Aponta? – Por Karimme Silva

02/06/2021

Montagem Teatral: Divinas Cabeças

Montagem: Teatro do Desassossego / Coletivas Xoxós

Karimme Silva[1]

Tudo gira no escuro. Espirais, movimentos de dentro para fora e vice-versa, círculos. Um movimento que o corpo direciona para se reposicionar em determinado lugar. O lugar: o porão, é claro, um espaço de profundidades concretas e metafóricas. As profundezas recontadas. De onde vem a gira e de onde surgem as luzes?

Para o porão também encontraremos, sem dúvida, utilidade. Nós o racionalizaremos enumerando suas comodidades. Mas ele é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas [...] no porão seres mais lentos se agitam, menos apressados, mais misteriosos. No sótão, os medos se "racionalizam" facilmente. No porão, mesmo rara um ser mais corajoso que o homem evocado por Jung, a "racionalização" é menos rápida e menos clara; não é nunca definitiva. No sótão, a experiência do dia pode sempre apagar os medos da noite. No porão há escuridão dia e noite. Mesmo com uma vela na mão, o homem vê as sombras dançarem na muralha negra do porão. (BACHELARD, 1998, p. 209).

Mesmo com velas em volta, a mulher vê suas sombras dançarem na muralha âmbar do porão. Ela chega anunciando algo que não é de hoje nem do agora. A entrada do espaço possui riscos, marcas. Um espaço de mistérios, como diria Bachelard (1998), mas mais do que isso: um lugar de partilha. Da cabeça da memória vem o corpo das lembranças.

Todo espaço precisa de uma limpeza. Não apenas a limpeza concreta, a faxina. Mas uma limpeza muito mais metafórica e simbólica. É possível ouvir as maracas e os caxixis, instrumentos que tocam e benzem, pois a mulher os utiliza assim. É possível ver/ouvir a pulsação de um corpo-tambor, como espaço de ritual e acolhida. A câmera joga com um movimento espiralar, dialogando com o corpo dessa mulher. A gira do tambor mostra o corpo que gira. GIRA: verbo e também substantivo, ato de girar e também simbologia, realizar movimentos circulares e também pulsar energia.

Para onde teu corpo aponta?

A mulher está de branco e muito bem acompanhada: são bonecas de diversos tipos e tamanhos. Ora são objetos cênicos; outrora, funcionam como personagens a quem se dialoga. Ela conta uma história, as bonecas escutam. Quem já teve uma boneca preta sabe a importância - e a força - disso. Vejo na mulher uma velha, mas também uma criança. É preciso passar por esses lugares da memória para poder se lembrar, e ela transita com facilidade. Interage com o vídeo em movimentos de proximidade e distanciamento: é o jogo, que chama pra mais perto pra te contar um segredo, e que te afasta para que consigas ver toda a história.

Para onde tua história aponta?

Em segundo plano, uma cenografia que até então, lembra uma árvore genealógica: as imagens dos familiares, como naqueles quadros de casas antigas. Uma árvore de onde saem raízes, frutos, Flores. Mais à frente, se compreende que a árvore é um altar e que ali ocorre uma celebração. "Cada corpo é um altar." A história do avô preto, a velha, a mãe, a criança, os guias. Tudo existe nessa história. Na parte dedicada a Dona Sancha, os dois lados de uma mesma história: a mulher (uma das Flores daquela árvore) conta em sutaque purrrtugais tudo o que aconteceu, mas gosta mesmo é da paródia. Quem gosta de contar história costuma gostar das partes engraçadas também. Esse negócio de mexer com visagem... RUM! TÉDOIDÉ, É MUITA ONDA! Mas ela conta gargalhando! HAHAHAHAHHAHAHAAHAHAHAHAHAHAHAAHAHAHAHAHAHAAHHAHAHAHAHA

Para onde tua voz aponta?

O som acompanha o corpo e vice-versa; a narrativa de contar histórias é sempre mais legal quando se tem para quem contar. As bonecas são ouvintes, são a plateia e também nós que estamos vendo/ouvindo. Porque não se está lá para ouvir, mas é possível estar. Ainda que não se esteja. "Nenhum corpo termina na pele". A mulher aguerrida dentro de um porão não está falando somente de si, mas de memórias, tessituras sensíveis.

Para onde teu coração aponta?

Em Seiva Bruta (2018), refletindo sobre outra ação e o espaço de um porão de outrora, afirmei: "É preciso muita coragem pra falar de si e da própria história. É preciso muita coragem pra desbravar terrenos até então guardados na própria memória/vivência e conseguir compartilhá-los. É preciso muita coragem para abrir os espaços internos aos outros."

Porém a Flor que desabrocha desse porão me responde: "não se deve entrar na guerra e ir embora". Ela acolhe todas as mulheres que foi e é. E na conclusão de seu ritual, determina a força desse ato:

"Às vezes, a vida vem pra cima da gente com muita força. Nessas horas, a gente tem uma arma secreta. A gente precisa saber muito bem quem a gente é. Só que vocês podem escolher ser uma pessoa diferente a todo momento. E a cada pessoa que vocês escolherem ser, vocês agarrem nela com toda a força, porque quando a vida vier, vocês vão ser fortes pra resistir a ela [...] tem muita gente atrás de vocês, e ainda tem os que estão por vir."

Nosso orí aponta para trás, para buscar de onde viemos e quem nós fomos.

Nosso orí aponta para dentro, para lembrar de quem nós somos.

Nosso orí aponta para fora, para reconhecer os nossos.

Nosso orí aponta para a frente, para descobrir tudo aquilo que queremos (e podemos) ser.

02 de junho de 2021


REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SILVA, Karimme. Seiva Bruta. Tribuna do Cretino. Outubro de 2018. Disponível em: https://www.tribunadocretino.com.br/l/seiva-bruta-por-karimme-silva/ Acesso em: 02 de Maio de 2021.

[1]Artista-pesquisadora. Mestra em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará - PPGARTES/UFPA, na linha de pesquisa de Poéticas e Processos de Atuação em Artes. Artesã de cena, palavra e som. Escritora e intérprete-criadora. Atriz e Colaboradora em Pesquisa e Montagem Cênica pela ETDUFPA. E-mail: rose.karimme@gmail.com

Ficha técnica:

Performance e Dramaturgia:

Andréa Flores

Performance Musical:

Leoci Medeiros

Direção Musical:

Leoci Medeiros e Thales Branche

Direção Vocal:

Thales Branche

Preparação Vocal:

Tainá Coroa

Trilha Original:

Thales Branche, Andréa Flores e Leoci Medeiros

Iluminação:

Vandiléia Foro e Coletivas Xoxós

Ambientação Cenográfica e Figurino:

Coletivas Xoxós

Confecção de Bonecas de Pano:

Rejane Sá

Fotografia e Design Gráfico:

Danielle Cascaes

Assessoria de Imprensa:

Lucas Del Corrêa

Gerenciamento de Mídia:

Lucas Del Corrêa e Yasmin Seraphico

Direção de Palco:

Roberta Flores e Leoci Medeiros

Produção Audiovisual:

Grazi Ribeiro

Direção Audiovisual:

Alexandre Baena

Encenação e Direção Cênica:

Wlad Lima

Residência Artística:

Teatro do Desassossego

Realização:

Multi Amazônia Brasil Produtora e Coletivas Xoxós