Pássaros que sangram em roda de meninas – Por Matheus Amorim.

03/11/2019

Montagem: As Bruxas de Salém

Montagem Teatral: Folhetim Produções Culturais

Matheus Amorim[1]

Quando entro no tribunal, há um cochicho grave partindo da arena que se estabelece enquanto disposição de palco no Teatro Waldemar Henrique, todos esperam de alguma forma por um julgamento, no palco, há o que parece ser uma mesa no fundo direito onde sob ela há um lenço branco e um galho de flores brancas e verdes, uma cadeira no meio esquerdo do palco e um pequeno praticável coberto com um tecido branco na frente direita do retângulo de chão rabiscado dando alusão à uma cama, penso estar em um quarto, será que na primeira cena já irei me deparar com um feitiço?

As luzes se baixam lentamente, as pernas agoniadas de um dos espectadores ao meu lado se intensificam, em dado momento ele parece esperar ansiosamente por ver o que meus olhos também desejam captar, presenciar a encarnação de uma história ainda não contada, de um lugar encoberto por uma narrativa escrita pelas mãos de um patriarcado nacionalista e capitalista que sempre enxergou qualquer suspiro de uma mulher como movimento libertário que deveria ser contido.

No ensaio Os Julgamentos às Bruxas de Salém: o Capitalismo e o patriarcado condenam as mulheres, Ricardo Farias cita a historiadora Silvia Federici em Calibã e a bruxa, esses acontecimentos que se deram concomitantemente ao extermínio das populações na América, aos cercos ingleses, ao começo do tráfico de escravos, da promulgação de leis sangrentas contra os ditos "vagabundos" e mendigos da época, alcançando o ponto culminante no interregno da transição entre o fim do feudalismo e a decolagem capitalista "quando os campesinos da Europa alcançaram o ponto máximo de seu poder, ao tempo que sofreram sua maior derrota histórica" (FEDERICI 2017, p 351), estão de certa forma, se olharmos por uma perspectiva sociológica deste marco histórico, embasando uma atmosfera de transformação da moral e do poder em lei afirmativa e efetiva sobre a morte de corpos, o que pode traduzir todo um movimento contra crenças, cosmovisões e vidas que se estabelecem para além da normatividade imposta pelo conhecimento cristão, o que daria para o julgamento às bruxas na América um tom extremamente político, estamos falando aqui de exterminar saberes que não se podem controlar. 

Trago isto para dizer que minhas expectativas eram em potencial as mais ardentes quanto a montagem do espetáculo As Bruxas de Salém, como leitor, pesquisador e alquimista do mundo que não se vê estava entusiasmado. Ver o espaço de entrada do teatro tomado pela imagem de mulheres fortes trajadas de uma irmandade em tons opacos, me remeteu diretamente ao quadro O Voo das Bruxas, de Goya. A imagem de quatro seres pairando sobre a cabeça de um quinto que se cobre com um pano branco se sobrepõe aos corpos pálidos cobertos por um figurino que carrega a imposição de um padrão ao corpo feminino do século XVII, a compreensão de manipulação vai tomando forma quando a trama do espetáculo aponta para a existência de um culpado em meio a tantas acusações e revelações sobre haver alguém no controle dos feitos místicos na obra.

As pernas inquietas ao meu lado se acalmam quando vozes femininas começam a ecoar no espaço, sussurros em prelúdio ou remetendo a pensamentos de uma personagem vão tomando forma até que uma luz vermelha na lateral se acende sobre o corpo de uma atriz, as movimentações da mesma revelam um estado de transe, onde os risos se confundem com um choro agoniante, a garota toma o centro do quarto e estica em forma de cruz os braços, enquanto isso uma presença ocupa o espaço na outra lateral, o corpo de uma velha curvada de cabelos longos. A menina é levada por suas partituras até a cama, onde acende-se uma luz de pino sobre a cena, onde agora a senhora encontra-se agachada, essa cena assim como outras no percurso da obra talvez traduzam toda a intenção que a dramaturgia tem em expor os mundos que se coagulam no mote do trabalho de pesquisa do autor e diretor do espetáculo.

De primeira percebemos uma situação posta: o que aconteceu para que as meninas de um pequeno vilarejo em Salém começassem a passar por uma série de situações onde suas consciências se diluíram em intentos de possessão? O que estaria por trás da dança nua na floresta? Onde as meninas do vilarejo aprenderam a dominar essa força, quem as ensinou? Temos então algumas faces que vão tomando forma ao longo da espetáculo, algumas personagens que funcionam como núcleo de inquisição, a coceira nas orelhas, o toque repentino no crucifixo e a memória de morte dos filhos revela uma personagem que ao mesmo tempo que deseja a morte das bruxas, constrói em si uma espécie de fetiche pelos acontecimentos que virão à tona, enquanto quem estar para ver esperava pelo crescimento dessa personagem e acreditei que ela se transformaria em uma espécie de ponte para a resolução.

Porém esse encargo é transportado para outra persona que durante o primeiro ato aparece em pontos bastante certeiros, onde revelam a imagem de uma jovem submissa e com medo de ter seus atos de liberdade expostos como uma espécie de vida profana perante a igreja, a jovem Leonor estava na floresta, mas pelo que parece negou-se a dançar, negou-se a tudo, menos a ver Abigail que tem tudo para ser a Bruxa de Salém, destroçar um pequeno pássaro com a própria boca.

Essa personagem que transita pelo protagonismo do espetáculo se coloca muitas vezes num jogo de ausências, como se estivesse em corpo ali, mas como se desejasse outro lugar, sua contribuição demonstra a imaturidade de quem conhece o poder e acha que o pode controlar, suas nuances entre maldade e ironia são muito bem traçadas e dão a ela o perfeito tom de quem faria tudo para conseguir o que deseja, o amor? Contudo em algumas cenas me parece haver uma transição entre sua farsa e sua real percepção sobre os fatos que se desenrolam e que precisaria de um pouco mais de precisão para pontuar sua interpretação, nada que atrapalhe o desenrolar de sua trajetória, mas acredito que quando o trabalho de atuação é potente, como este o é, tudo deve convergir para a sua "máxima performance".

Temos então a tia de Abigail e diretora do que parece ser a irmandade daquela pequena corte. Admito que meu primeiro palpite sobre quem seria a bruxa era para a senhora que ao ver sua filha em estado de expurgo, pega sobre a mesa um galho de flores brancas, molha com água e bate sobre um lenço, essa ação despertou sobre o meu olhar a presença que buscava, uma benzedeira do campo que muito bem se adéqua ao enredo da história. Para mim em dado momento essa mulher que fez de tudo para ocupar o lugar que possuía iria dobrar o júri e revelar-se a grande pagã.

Entretanto quando a enfermeira Joana aparece em cena minha percepção ganha uma nova candidata, sinto sua interpretação em uma constante, ela mantém um caminho bastante difícil na linha "realista" de atuação, sua personagem parece estagnar de propósito, não possui picos tão explosivos como as outras, mesmo que essa se revele como chave fundamental e de onde tudo se desencadeia, ao expor sua relação com a jovem Abigail, sinto sua frieza disfarçada de desejo. Então ali fica claro que há uma questão mais emergente de se enxergar: Joana teria prometido um mundo fora do vilarejo para a bruxa de colar enegrecido a fim de que? Percebo então que esta personagem é a rebelião política da história, carrega em si o desejo de destruição àquela corte, mesmo que para isso manipule num jogo sujo as quatro jovens com quem se envolve.

Temos duas personagens que ao me ver estão estabelecidas dentro de um triângulo muito bem coreografado, que se localizam no espetáculo como sendo o feitiço. As partituras que estas executam quando as luzes no chão se acendem trazem a potência que o espetáculo pedia, as vozes uníssonas arrepiam e nesse instante sinto o ápice ganhar força, bem como uma personagem que até então só me havia despertado uma imagem tirana bastante enfática. Esta personagem que chega com seus livros e capa se traduz para mim como uma papisa nas cartas de tarot, aquela que porta o juízo, nada mais.

O espetáculo percorre um caminho muito bem amarrado pelo jogo de cena firme e potente que as atrizes desenvolvem, o elenco segura o mistério até sua última cena, deixando uma atmosfera irresistível ao se apagar as luzes. Ainda sentado, sinto as pernas agoniadas ao meu lado se levantarem, há um sorriso no rosto do espectador, sinto então que As Bruxas de Salém tiveram seu feitiço completo. Todas ali eram bruxas e isso fica claro.

No mundo que não se vê, o jogo da energia não se faz apenas por uma matriarca, é uma lei: nenhuma irmã ataca sua semelhante, nenhuma irmã coloca o encargo da culpa em outra. Nesse ponto, sinto que abra alimentou o que já está normatizado na historicidade das Bruxas, isso também gera uma reflexão. Acredito que no fim todos ligam para a mentira que se estabelece quando a verdade se ausenta, pois a mentira é aquilo que o homem designou enquanto arranjo para condenar e subordinar aqueles que não se encaixam, tendo em vista a manutenção de seu próprio poder.

Aqui então, pulsa uma crítica dentro da obra: a dramaturgia coloca um tom bastante irônico, obscuro e carregado de uma dor direta quando se remete a imagem desse deus que tanto aterroriza as personagens; isso chega a ser bastante incisivo e em uma das falas de Leonor, quando a mesma afirma "a fé apodrece as pessoas", esse tom colocado na hora em que tudo parece ruir, faz meu corpo sentir que já não estamos mais falando sobre meras bruxas; sinto a revelação de uma perseguição ao "feminino", à força da mulher em todo e qualquer tempo. Tudo então ganha sentido: o porquê de um elenco totalmente feminino, a bilheteira, a moça dos camarins, a bruxaria é o próprio acontecimento ali presente, é talvez em todas as minhas dúvidas uma forma de rememorar a vida daquelas que morreram por não se calarem e por serem em sua completude mulheres livres. Viva às bruxas!

"Blassed be" para quem é de magia!

3 de novembro de 2019.

[1] Ator e Graduando do curso de Licenciatura em Teatro, UFPA.

Ficha Técnica

Elenco:

Katia Rejane, Layse Souza, Lohane Takeda, Luana Oliveira, Mônica Moura, Nathália Nancy, Rita Ribeiro , Tainah Leite.

Equipe:

Desenho de Luz:

Breno Monteiro

Desenho de som:

Felipe Fonseca

Fotos:

Felipe Thuan

Marketing digital:

Tina Sâmia

Comunicação:

Dani Walendorf

Backstage:

Gorette Reis

Dramaturgia e Direção Geral:

Guál Dídimo