Por uma Cena Emancipada – Por Edson Fernando
I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica.
Montagem Teatral: TrajetóriaS
Edson Fernando[1]
"Representar o mundo contemporâneo no teatro em nossos dias, portanto, não é somente ordenar estes materiais de dramaturgias novas segundo formas teatrais antigas. É ainda, e sobretudo, elaborar novas formas, suscitar novas relações entre palco, plateia e o mundo" (DORT, 1977, p.22)
Desde que Téspis se destacou do coro ditirâmbico e gritou "Eu sou Dionísio!", o Teatro, tal como o conhecemos até hoje no Ocidente, percorreu uma longa trajetória de mais de vinte e seis séculos. Essa longa jornada é notadamente marcada pela primazia do texto sobre todos os outros elementos presentes na linguagem teatral. A "Poética", do filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), é o primeiro tratado de poética que temos conhecimento; nela o Estagirita reuni uma série de anotações e considerações acerca dos tipos de poesia imitativa, sua classificação, estrutura e partes constitutivas. Embora esta obra se encontre distante cerca de dois séculos do período áureo do nascimento da Tragédia – momento histórico em que o próprio gênero já havia declinado – e, portanto, nunca teve a intenção de ser um manual prescritivo para poetas cômicos ou trágicos, ela acaba por estabelecer marco teórico fundamental, principalmente a partir das reinterpretações realizadas por autores renascentistas que viriam a culminar na Teoria das Três Unidades – unidade de ação, unidade de espaço, unidade de tempo.
A leitura que se extrai de Aristóteles a partir dessa teoria renascentista, grosso modo, afirma que toda peça teatral deve conter uma trama central claramente desenvolvida com início, meio e fim – unidade de ação –, que deve se passar, preferencialmente, num único ou poucos ambientes diferentes – unidade de espaço –, no decorrer de um período ficcional curto de tempo – unidade de tempo. Observe que todas essas considerações estão diretamente ligadas ao trabalho de composição do texto "dramático", centro de gravidade da encenação.
A citação de abertura desta crítica, no entanto, aponta para a problematização fundamental que se apresenta para os fazedores de teatro do nosso tempo: que forma poética suporta os novos conteúdos dramáticos/dramatúrgicos? Ou ainda, que novas formas poéticas deverão ser criadas/inventadas para enredar artistas e público numa relação dialética, ética e estética?
É importante destacar que a problematização presente na citação de Bernard Dort (1929 – 1994) remete aos idos do teatro do final da década de sessenta, do século XX, quando, então, as questões acerca dos rumos e das crises que o "drama" já vinha sofrendo historicamente já faziam parte do centro da atenção de pensadores como Peter Szondi (1929 – 1971), por exemplo. A conjuntura sociocultural era outra, no entanto, pois outros eram os horizontes das lutas e das quebras de paradigma diante da forma fixa ditada pelos supostos cânones aristotélicos para o teatro. A forma épica, capitaneada principalmente por Bertold Brecht (1898 –1958), e os experimentos ritualísticos inspirados nos escritos de Antonin Artaud (1896 – 1948), por exemplo, despontavam como tentativas de superação e renovação da linguagem teatral, dentre outras.
Mais de cinco décadas depois a problematização de Bernard Dort continua valendo e me provoca a pensar sobre os desafios que temos hoje e o quanto ainda estamos ou não enredados na primazia do texto dramático, tudo isso à luz das minhas percepções da montagem "TrajetóriaS", quinto espetáculo produzido e apresentado na I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica, com direção e dramaturgia assinadas por Amoras Signoreth.
Ao contrário dos quatro primeiros espetáculos apresentados – nos quais tivemos obras de Nelson Rodrigues, Nazareno Tourinho, Federico García Lorca e Edyr Augusto, respectivamente – temos, pela primeira vez nesta MEF, uma dramaturgia autoral levada a cena. Esta é a questão crucial, no meu entender, pois é a primeira vez que a encenação não elege um "texto dramático convencional". Chamo "texto dramático convencional" aquele que é escrito por um dramaturgo, que mantém relação, em maior ou menor intensidade, com o marco teórico estabelecido na "Poética" de Aristóteles e que centraliza e/ou mantém o centro de gravidade da encenação na intriga/trama/conflito.
É bem verdade que "Valsa N° 6" pode ser considerado o menos ou talvez nada "aristotélico" dentre os citados, mas ainda observo nele a intriga/conflito instalado na cabeça de Sônia que tenta, a todo custo, organizar os farrapos de memória que lhe restam, mesmo depois de morta. A trama de seu assassinato se desenvolve de modo não linear, não realista e aos saltos bruscos alternando alucinações, delírios e memórias que certamente podem ser considerados antidramáticos. Mas ainda assim, considero que o centro de gravidade é essa espécie de "drama em farrapos", isto é, cenas em que as personagens ainda se veem imersas em situações dramáticas, embora o contexto geral da dramaturgia desestabilize, de algum modo, o desenvolvimento dos acontecimentos ação, rasgando, portanto, as vestes de linho da toda poderosa unidade de ação e deixando-a somente com seus farrapos.
Isso que estou chamando de "drama em farrapos, é bem diferente do que pude conferir em "TrajetóriaS", isto é, uma dramaturgia autoral emancipada da intriga, que se apresenta em forma episódica, com temporalidades distintas instaladas a todo momento em que a ênfase se assenta na supra pessoalidade do íntimo – neste caso, dos atuantes, mas também de quem assina a dramaturgia – arrastando todos os acontecimentos para a linha tênue entre vida e arte, "vida em drama" pra ser mais exato. Todas essas características encontram abrigo naquilo que Jean-Pierre Sarrazac (1946) e seu grupo de estudos denominou de "crise do drama" (2012), uma concepção que permite pensar "ação", "fábula", "conflito", "diálogo", "personagem" desvencilhados ou numa perspectiva não subordinada a "tradição aristotélica". Vamos ver como observo isso na montagem.
O plano de palco me apresenta uma arena espelhada disposta ao longo do comprimento do teatro; nas extremidades vejo manequins vestidos com figurinos; na panada preta ao fundo dois grandes olhos espreitam tudo – silenciosamente ou seriam os olhos do narrador onipresente? –. O palco disposto assim, se abre aos meus olhos como uma grande passarela de moda, na qual é inevitável não me reconhecer como espectador, pois a minha frente há sempre o espelhamento dos outros espectadores. Palco, portanto, desvelado, desnudado ou não propício para as convenções dramáticas. O que lhe caberá então? Aqui observo um dos pontos fulcrais da montagem na medida em que a dramaturgia autoral, a meu ver, é tecida com material auto testemunhal, documental e/ou autobiográfico cujo eixo basal agrupa as questões do universo LGBTQIAPN+.
Ora uma vez que o palco se apresenta desvelado, desnudado e a dramaturgia se estabelece como uma espécie de retrato autobiográfico das situações apresentadas, haveria espaço ou seria adequado termos o trabalho dos atuantes pautado pela representação? Certamente que não. E a direção de Amoras Signoreth escapa dessa armadilha, felizmente, pois aqui o risco de enveredar pelos estereótipos baratos e o melodrama panfletário seria muito grande. Ao invés disso, a cena dispensa o princípio da verossimilhança e mergulha profundo no princípio da veracidade. Então, se a representação se estabelece e se firma pelo princípio do que precisa "parecer verdadeiro" (PAVIS, 2005, p.428), os atuantes, em cena, se afastam disso e mergulham nas suas camadas mais íntimas – supra pessoalidade – e me entregam um nível de veracidade absurdamente co-movente. O traço forte de relato auto testemunhal e/ou autobiográfico me convida a escutar tudo muito atentamente, olhando nos olhos de cada atuante e enxergando neles as dores, desejos, incertezas e incompreensões existenciais que, a meu ver, ou foram vividas por cada um ou fazem parte do ciclo de relacionamentos social deles. Nestes momentos de entrega verdadeira e desnudamento de alma, não há música, não há sonoplastia, não há nenhum tipo de mise-en-scène desviando ou reforçando a ênfase para qualquer tipo de dramaticidade barata, há somente o encontro do atuante consigo e, consequentemente, comigo. E nos encontramos neste espaço sagrado do palco, sem escamotearmos a realidade com ilusões dramáticas frívolas, espaço onde se operou em mim o encontro orgânico com os atuantes; é o espaço onde as fissuras na realidade permitem extrapolar a "vida em drama".
Mas isso é somente uma parte da encenação, a parte onde conhecemos mais de perto a vida em drama, vivências relatadas por essas pessoas ainda tão incompreendidas e maltratadas por uma visão hegemônica preconceituosa e leviana. Então, somado a essa parte mais existencial – que estou chamando de "drama em vida" – a encenação intercala diversos números musicais ao longo da apresentação, momento no qual a linguagem cênica das Drags encontra espaço para desenvolver todo seu potencial. Nesses momentos as cores, formas, caras, carões, cabelos, apliques, maquiagens e brilhos explodem numa profusão de elementos que me trazem leveza e descontração. Não tenho como não comentar a cena que vou chamar da "batalha dos cabelos" onde duas drags – desculpem, não sei o nome delas – mostram toda a sua desenvoltura no palco dançando ao ritmo alucinante da música, com direito a um festival de bateção de cabeça e cabeladas dignas de deixar a Joelma no chinelo e de queixo caído. Muito bom!!!
Os números musicais me permitem perceber todo esse aspecto da ludicidade drag, mas vão além, na maior parte dos casos, pois também indicam e problematizam questões sociais e temáticas muito caras a todo universo LGBTQIAPN+, como questões de gênero, moralidade e sexualidade.
A encenação ainda conta com uma voz em off que faz algumas costuras de cena. Considero como uma breve incursão épica, contudo, mais preocupada em costurar as cenas do que propriamente desenvolver algum aspecto brechtiano ligado ao historicizar as questões apresentadas. Aqui talvez haja espaço para adensar ainda mais as abordagens, recorrendo as trágicas estatísticas que temos atualmente sobre as pessoas trans que sofreram e sofrem ataques fatais, por exemplo.
Por tudo isso, considero que Amoras Signoreth realizou o movimento de encenação mais ousado, dentre as montagens já apresentadas na MEF ao produzir uma cena emancipada dos cânones dramáticos convencionais e se arriscar a dialogar com o mundo contemporâneo tanto por seu conteúdo, quanto pela forma, encarando, portanto, de peito aberto, o desafio proposto por Bernard Dort no início desta crítica, isto é, se propôs a "elaborar novas formas, suscitar novas relações entre palco, plateia e o mundo".
Evoé
Belém, 08 de novembro de 2024.
[1] Ator e diretor teatral; coordenador do projeto Tribuna do Cretino;
Referências
DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. Trad. Fernando Peixoto. São Paulo: Perspectiva, 1977.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005.
ZARRAZAC, Jean-Pierre (Org.); NAUGRETTE, Catherine... [et al.]. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São Paulo: Casac Naify, 2012.
Ficha técnica
Montagem: TrajetóriaS
Elenco:
Pietra Signoreht (Pedro Canavarro)
Bacu Rabazônia (Arth Morbach)
Nix Signoreth (Wander Simões)
Amsterdaaan (Cibele Maciel)
Scarllett Monserratth (Phellyppe Christtian)
Ariella (Bruno Euller)
Apresentadora:
Bunny das Coxinhas (Eduardo teixeira)
Voz Off:
Amoras Signoreth
Produção:
Antônio de Oliveira
Assistente de produção:
Mirela Taise
Yuriel Soul-za
Julia Rosa
Laiza Bonifacio
Laiza Gabriele
Designer de Mídias:
Bruno Euller
Direção de Imagem e Fotografia:
Ana Paula Gomes
Cobertura Midiática:
Bianca Alencar
Kailany Silva
Regiane Castro
Antônio de Oliveira
Sonoplastia:
Amoras Signoreth
Operação de Sonoplastia:
Jamile Rodrigues Ferreira
Jully Campos
Concepção de Iluminação:
Arthur Mello
Operação de iluminação:
Arthur Mello
Mac Silva
Cenografia:
Leandro Cercontini
Tyelle Santos
Figurino:
Asther Ak'Kox Moreira
Amoras Signoreth
Acervo ETDUFPA
Direção e Dramaturgia:
Amoras Signoreth (Victor Amoras)
Apoio:
Haus of Amoras
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