Quando a(s)cenderem as fogueiras... – Por Raphael Andrade

03/11/2019

Montagem: As Bruxas de Salém.

Montagem Teatral: Folhetim Produções Culturais.

Raphael Andrade[1]

Belém, dia 31.10.2019 - Dia dedicado às Bruxas.

Soube, por meio de uma plataforma social, um convite inusitado para escrever para Elas. Não hesitei em dizer: sim - e emendei: no dia 31 de outubro! Porventura, este ano, ainda não havia escrito nenhuma linha nas plataformas virtuais da Tribuna do Cretino, "acho que as ocultistas querem ver queimar minha fogueira", pensei. Seria uma espécie de convenção das Bruxas! Explico: é o que a maioria dos elencos se referem (com eufemismo, claro) quando escrevo criticism.

Às 18h. do referido dia, ao ouvir as badaladas do sino da igreja próximo de casa, me enroupo com uma vestimenta preta e o adorno de cabeça beret da mesma cor, à la Miranda Priesley: Nossa, vestir a cor preta no Halloween? QUE ORIGINAL! Antes de sair, pus o meu livro Best-seller de cabaceira na bolsetinha, para passar o tempo enquanto não ouvisse as três badaladas que começa, enfim, a magia teatral. Irei pular o meu trajeto até o teatro, pois em Belém não há nenhum feitiço interessante para explicitar nas linhas que se seguem. TSC. TSC.

Ao chegar no Teatro Waldemar Henrique, que é envolto de árvores vultosas, percebo o primor da comunicação visual na fachada do referido teatro que atingi de maneira primorosa a ideia sintetizada do que será apresentado. Sou um dos dez e(x)spectadores que havia chegado antes das 19h15, pois queria sentar nas poltronas macias para ler meu livro, ademais, minha idade não permite que eu permaneça muito tempo em pé.

Ao adentar, enfim, no recinto sagrado, meus olhos giram para a indumentária "cardinalícia" bem recortada e com puro estético como se sobrevoasse em frente à panada de cor preta. Procuro o melhor lugar para não perder nem um lance... mas como saber, haja vista que era palco-arena-circular? Tive a brilhante ideia de sentar-me perto do aparelho de som, no qual continha a sonância de chuva e pequenos sonidos que me remetia a trovoada - produto da "atmosfera" lógica-espaço-temporal existente nos filmes de terror e nas peças teatrais que envolvem suspense, em que conserva ligações com universos e temporalidades cíclicos, mais ajuntados à natureza e às mitologias assustadoras impregnada no imaginário memorialístico medonho da tenra infância e, nesta peça em especial, seria o guia para que pudéssemos penetrar nas narrativas ocultistas.

Na arena, uma cama com panagem branca, duas cadeiras simples, uma mesa e mais nada (todas utilizadas em cena), com um contraste belo e preciso do interior do teatro, que remete a um celeiro art nouveau. A trama começa, Guál nos apresenta um microcosmo de um prevalente modus vivendi do século XVII, refletindo os embates sustentados no intercurso do universo social e religioso da supradita época. Ancorados pela latente hipocrisia da crença religiosa em exterminar qualquer subversão que lhe seja ultrajante.

O espetáculo ganha uma força crescente, amparado pelo recurso de microfone de lapela, no qual podemos escutar a respiração, o baque quando as atuantes caem no chão, as nuances das vozes, parece que somos transportados como voyeurs por tamanha veracidade, porém, "havia uma árvore no caminho", o mesmo palco análogo à dança circulares, à morte, ao rito de se dançar rodeando uma fogueira e concomitantemente à ancestralidade, é o mesmo palco que não possibilita que enxerguemos as feições das atuantes em determinados momentos, apesar do esforço em estarem em uma sequente triangulação pelo espaço geográfico da cena. Penso: - Seria este um convite em irmos novamente ao espetáculo e vivenciarmos a narrativa por outra ótica? E concluo: - Certamente seria uma boa ideia.

O espetáculo nos envolve, não possui grandes arroubos de estilos, muito menos nuances entre uma cena e outra, mas consegue nos prender no mais difícil, no texto bem estruturado, que apresenta no entremeio de ressentimentos amorosos, sob causa de desafetos e medições mentirosas, que vai sendo descoberto um visceral conflito de vontades, ódio, subversão, ciúmes, mentiras e um substrato das diferenças de pensamentos filosóficos-religiosos.

No ótimo texto que não procura se ater à temporalidade da escrita da peça, não tenho como não fazer analogia entre o século XVII (mais especificamente em Salém - cidade costeira histórica no Condado de Essex, Massachusetts) e hodiernamente, no qual mostra (sem panfletagem) que quase nada mudou no pensamento religioso na incessante caça às bruxas. Volvendo um pouco o olhar para o Brasil de outrora (outrora?) quaisquer ritos que não fossem cristãos eram chamados de calunduns - palavra de origem banto, que foi associada ao termo kimbundo quilundo, um nome genérico para qualquer espírito que possuísse uma pessoa.

Hoje, as bruxas mudaram de cor, de nome. E os rituais que se assemelham com o mágico, com o transe, ou "recebimento de cabocos", são motivos de preconceitos e injúrias dos fanáticos e encegueirados religiosos, que são capazes de matar novamente o Cristo pela sua fé. Logo, as fogueiras acesas há séculos, ainda incinera por cá, mormente na política instalada que levanta a bandeira da sociedade teocrática, ou seja, só mudou o contexto. As questões que brotam do texto, as comparações entre sistemas de governo não podem ser passadas em branco, além das regras de conduta comunitárias, a dicotomia entre o bem e o mal presente na sociedade, nos mostra com clareza que são inerentes ao ser humano em qualquer lugar ou período. Sem referir sobre a ideia do demônio, que nada mais é que uma alegoria inventada pelo poderio religioso para que seus fiéis sentissem medo. Aliás, o texto explicita e sintetiza de maneira pungente: quem tem fé...tem medo! Quem tem fé...tem medo! E proponho uma nova simbiose: Quem tem medo...tem fé.

No que tange às atuações, um viva à meticulosa composição de Tainah Leite, no qual tinha tudo para cair no mais do mesmo e no over, mas, ao contrário, ganha um relevo especial por cada nuance, cada olhar sarcástico, cada partitura corporal e finalização dos movimentos, em um intencional fôlego em cada ação cênica. Sem falar as intervenções de Rita Ribeiro, que proporciona instantes de rara intensidade interpretativa, sem precisar de muito para parecer orgânica, no qual cresce no decorrer da trama e revela segurança e brilho interpretativo. Já Luana Oliveira, com intencional fôlego superativo nos deixa boquiabertos com sua maravilhosa interpretação, uso de palco e em convicta performance vocal/gestual com seguras modulações alterativas de estados emocionais.

Mas nem tudo faísca, apesar de possuir uma ótima dicção e mostrar-se segura (às vezes) no palco, o papel da inquisidora não ornou, primeiro por não suportar a condição de vestir o poderio e todas as suas nuances maléficas, algo que, a meu ver, dificilmente fugirá de uma figura masculina e todo o peso do patriarcado opressor. Apesar de entender o porquê de possuir apenas figuras femininas na trama. Segundo pelas modulações e enunciações vocal no preenchimento de exigentes variações das nuances inquisidoras de seu papel (voz quase monocórdia). As nuances precisam ser mais exploradas, pois muitas palavras ditas não convergiam na ação corpórea, o corpo precisa acompanhar o que se diz, pois até palavras não ditas são acompanhadas pelos olhos.

Em um texto tão bem escrito, há necessidade se ter atenção ao proferir o famoso "né" ao final das frases, ou na tola colocação de "eu não sou baú", e no exagero de algumas (e poucas) expressões que podem, facilmente, cair no burlesco. Mas nada disso tira o brilho da apresentação. Brilho este presente sob efeitos luminares pontuais (Breno Monteiro) com prevalência de sombras e o belo tom âmbar. Num belo figurino em ambiência aldeã do século XVII, que nos revela quase uma padronização entre as mulheres, com suas toucas e vestidos campestres, contudo, nos detalhes, o figurino consegue explorar com densidade os contornos de cada persona que adentra o palco.

No epílogo, temos uma espécie de round desafiador de culpas e acusações recíprocas, medos, configurando justificações negativas de seus próprios atos, (in)certezas e escolhas. Exemplarmente capitaneado pela dosagem mor imprimida às personificações do cinismo da bruxa de Salém em seu furor final e indômito. É uma peça que diz muito sobre o quão estamos submersos em saber a verdade ou apenas falar sobre a verdade que nos foi imposta e, concomitantemente, que nos é intrínseca. E revela um perigo: Ninguém se importa com a mentira se a verdade não existe mais.

No apagar das luzes, ao final da peça, com o velho teatro envolto na imensa escuridão, reverbera além das palmas o quão As bruxas de Salém está sintonizada na contemporaneidade, não só pela força de uma textualidade de clássico já feito (por um outro viés), por Arthur Miller (1925-2015), como também pela artesania conceptiva de Guál Dídimo e da potente Folhetim Produções Culturais, que merece, outrossim, avaliação de qualidade e profissionalismo.

As luzes se acedem, regressamos ao real (o que seria real, afinal?) aplaudimos e reverenciamos o trabalho. Prestes a sair, volvo o olhar novamente para a vestimenta vermelha cardinalícia exposta à frente da panada preta atrás da porta da entrada, que me faz um convite em vestir a carapuça - reflito e parafraseio nessas linhas finais a Bruxa mor dos nossos dias: Quando a(s)cenderem as fogueiras... Quero dançar, subverter e gritar em uníssono com as BRUXAS.

02 de novembro de 2019.

[1] Professor-artista - pesquisador, pós-graduando em Arte e Educação.

Ficha Técnica

Elenco:

Katia Rejane, Layse Souza, Lohane Takeda, Luana Oliveira, Mônica Moura, Nathália Nancy, Rita Ribeiro , Tainah Leite.

Equipe:

Desenho de Luz:

Breno Monteiro

Desenho de som:

Felipe Fonseca

Fotos:

Felipe Thuan

Marketing digital:

Tina Sâmia

Comunicação:

Dani Walendorf

Backstage:

Gorette Reis

Dramaturgia e Direção Geral:

Guál Dídimo