Quando o Rio Move – Por Karimme Silva

08/11/2023

Ato Dadivoso: Quando a Folha Dança

Intérprete-criadora: Rosangela Colares

Karimme Silva[1]

Uma mulher com seu corpo e seus elementos-memórias. É assim que a doutora em artes e intérprete-criadora Rosangela Colares adentra o palco do Teatro Universitário Cláudio Barradas. Sozinha. Sentada. Posicionada, observa serenamente o seu público posicionado em uma fria caixa preta. Fria pela temperatura, pois o calor é algo que se estabelece desde o primeiro movimento. Um ato dadivoso se inicia. Não é (só) dança nem (só) teatro, é outra coisa. São as Dádivas para poder testemunhar e recontar algo.

a Dádiva depreende intenso intercâmbio nas ações de dar, receber e retribuir o maná nas relações sociais. A circulação da Dádiva acontece através da troca, da partilha do maná, espécie de representação simbólica da força-ação decorrente da relação intersubjetiva entre quem oferta algo, como parte de si mesmo, e alguém que recebe com uma energia de retribuição. Pessoas se dão, se doam a outras pessoas, que por sua vez passam a dever algo a quem ofertou em um movimento-ação dinâmico e potente, de ir e vir, de retroalimentação. (BAYMA, 2023, p. 23).

Neste Ato Dadivoso, Rosangela conduz o rito. Os elementos-memórias localizados quase ao centro da cena trazem sons, luzes e diversas texturas, ou seja, sentidos para aquele corpo centralizado no palco. Com as ervas nas mãos e como quem abre sua casa, a atuante convida o público para lhe visitar. Do centro, ela abre suas margens. As pessoas que chegam se posicionam em círculo, como crianças que sentam para ouvir as histórias de uma ancestral mais antiga. Nossos ancestrais mais antigos são os indígenas. E nessa retomada de ações-histórias-cenas-memórias, a atuante traz nas mãos a ação de encher o rio que seca e traz na voz as denúncias que há mais de 500 anos destroem o Brasil, ou melhor, PINDORAMA. Ela pergunta para seu público-margem: "Qual é o teu rio?" E as respostas que se ouvem – palavras de origens indígenas – são exatamente aquelas que não existem no dicionário da língua portuguesa colonizadora.

TAPAJÓS

MAGUARI

GURUPI

PARÁ

GUAMÁ

CAETÉ

ARAGUAIA

GUAJARÁ

PARACAUARI

ARAPIUNS

"Enche ele, vem encher!" O convite da mulher em cena é para encher aqueles que são os nossos rios, margens que secam a cada ano. São os rios das nossas lembranças, mas também são os rios de extração ilegal do garimpo, são as margens das florestas que são desmatadas, são as casas dos indígenas que seguem sendo perseguidos. Espaços de uma Amazônia não-romantizada, sem ser aqueles cartões postais para sudestinos, sulistas e gringos, que querem fincar seus pés como se fossem os donos. Cada um destes rios conta (e leva e traz) uma história. Rosangela vê e se movimenta das margens do Arapiuns à fala da avó, da mãe, da tia-avó e do irmão. O movimento de apontar para a frente, sem esquecer o que te trouxe, como Lima (2023) mencionou ao citar[2] o projeto Clínicas do Sensível, uma base de pesquisa para este ato dadivoso. Rio é potência artística, como um elemento que funde a paisagem e a poética – ainda que por conta da ação desumana dos exploradores, esta potência se perca cada vez mais no caminho.

A terminologia rio-potência apresenta-se de forma didática neste trabalho, sendo considerada uma forma de aproximar os dois conceitos anteriores – rio-paisagem e rio-poética – através de uma intersecção de ideias, haja vista que nenhum dos dois conceitos pode ser desconsiderado ao tratar da ideia dos rios enquanto potência e indução para a criação artística [...] É importante que o artista, por questões criativas, alcance a sociedade e estenda-se para fora dela, levando, pela produção poética, a sua alma visível ao convívio universal. Ao conferir potência a uma paisagem, compõem-se uma série de significantes/significados, os quais podem ser explicitados através da obra artística. (FONSECA, 2019, p. 88-89).

Não se pode ignorar o caminho desses rios; mesmo na capital onde furos-canais-pontes margeiam e cortam toda a cidade de Belém, ou melhor, MAIRI. Aqui as águas têm muita força. O público-margem desenha um mapa de ervas no chão daquele palco, tecendo com a intérprete as várias histórias. Narrar é tão importante quanto viver, e Rosangela revive para falar de um rio que parte e leva todos os seus viajantes. Um espaço profundo de rastros, Arapiuns que nunca mais será visto/vivido/sentido da mesma forma. ELA É a cabeça-cabaça que aponta o caminho, o apito-assobio que ambienta o espaço, as sementes do chão que estão na boca. Ela engole o movimento, pra poder cuspir pro mundo. O corpo de uma mulher em diversas retomadas, que retoma o espaço da cena em todos os sentidos possíveis, e que nos recortes de vídeo, senta e observa, como uma criança que pára para contemplar o seu ancestral mais antigo. Mais do que um ato de força, é um ato de fé e de retorno.

Acredito movimentar forças em busca de afirmação da diferença, de reconhecimento da minha ancestralidade e de resgate da fé. Fé que foi cultivada pelos meus avós paternos e depois me foi negada, sob o pretexto da salvação e libertação dos pecados, em processo semelhante ao que foi feito aos indígenas e escravizados, no período de colonização do Brasil. (BAYMA, 2023, p. 19).

Mas para onde vai a fé quando o rio leva embora? Um corpo de homem que parte em vídeo, outro corpo da mulher que se reparte em cena, sentada, em plano baixo. Ela observa a tela, a ida, o retorno. A expressão facial é serena e ao mesmo tempo, molhada, de quem navegou fundo, mas trouxe algo de volta. São os ventos que balançam as folhas, são os cabelos grisalhos de um homem, é uma das margens daquele rio. É um ato dadivoso que a partir da morte, ou melhor, do ENCANTAMENTO, fala de vidas e ancestralidades, ligadas pelas folhas e pelo rio que mesmo sendo um, são tantos, como Krenak (1992) afirma:

Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores, para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender [...] sonho de verdade é quando você sente, comunica, recupera a memória da criação do mundo onde o fundamento da vida e o sentido do caminho do homem no mundo é contado pra você. Você toma, aprende como se estivesse dentro de um rio. Este rio, você fica olhando ele, depois você volta, aí você olha. Não é o mesmo rio que você está vendo, mas é o mesmo. Porque se você fica olhando o rio, a alma dele está correndo, passando, passando... Mas o rio está ali. Então ele é sempre, ele não foi, é sempre. (KRENAK, 1992, p. 202).

As diversas relações possíveis com o rio enquanto instância criativa – e numa perspectiva mais ampla, instância de vida – relocalizam artistas-pesquisadores que há muito tempo possuem relações mais próximas e densas. Quando a Folha Dança é um trabalho que liga planos por meio do movimento de um corpo que mergulha fundo, para depois erguer a cabeça, os membros e buscar ar. Rosangela deixa o seu público sem ar e todas aquelas águas fazem sentido, pois atravessam, agora pelo rio lacrimal que se move nos olhos-margens mais atentos. Tudo se movimenta, dentro e fora, nas margens e em seu centro. Ali (e aqui neste rio), as águas tem muita força.

bate o vento e a folha dança

só me restou a lembrança[3]

08 de novembro de 2023


[1] 1 Paraense. Mestra e Doutoranda em Artes pela Universidade Federal do Pará (PPGARTES/UFPA). Especialista em Linguagens e Artes na Formação Docente. Artista-pesquisadora de Teatro, Dramaturgia, Encenação, Sonoridades e Processos Criativos. Intérprete no projeto musical MANTO. Escritora, com textos publicados nas coletâneas Trama das Águas, e Revoada, ambas de literatura feminina paraense. Colaboradora em Pesquisa e Montagem Cênica pela Escola de Teatro e Dança da UFPA. Artesã de cena, palavra e som.

[2] Informação verbal, mencionada na sessão de comunicação Clínicas do Sensível: Acompanhamento Psicopoético em Processos de Criação e Pesquisa, na II Feira Artístico-Cultural do IFPA/Campus Belém (outubro/2023).

[3] SILVA, Karimme; MOURA, Mateus. Lembrança de Oxóssi. In: Manto. Belém, 2021. Registro fonográfico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OKVYLjQAAUU Acesso em: 07 nov 2023.

Referências

BAYMA, Roberta Bentes Flores. Teatro Dadivoso: ritos e atos poéticos como práticas de cuidado de si e de outres. 215 f. Tese (Doutorado em Artes) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Arte, Belém, 2023.

FONSECA, Roseany Karimme Silva. Caminhos Marajoaras: o Rio enquanto Paisagem, Poética e Potência Artística. Arteriais - Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes, v. 5, n. 8, p. 85-90, 2019.

KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. p. 201-204. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

LIMA, Wlad. Sessão de comunicação Clínicas do Sensível: acompanhamento psicopoético em processos de criação e pesquisa. II Feira Artístico-Cultural do IFPA/Campus Belém. Belém, 2023.


FICHA TÉCNICA

Intérprete criadora:

Rosangela Colares

Acompanhamento Psicopoético:

Wlad Lima

Vídeos:

Mateus Moura

Suporte Técnico:

Mateus Moura e Leo Barbosa

Apoio:

Coletive Umdenós e Clínicas do Sensível