Rainhas: antes tarde do que nunca! - Por Hudson Andrade. 

16/09/2018

Montagem Teatral: Eternamente Rainhas.

Montagem: Companhia Paraense de Potoqueiros  

Hudson Andrade[1].

Quando eu era criança havia uma venda de tacacá aqui em casa. Minha tia chegava muito cedo do Veropa e começava o ritual de preparar o tucupi. Eu sentava ao lado das mulheres da casa e não podendo pegar em faca, ficava olhando e ouvindo. Minha tia tinha um rádio e a manhã passava com rádio novela, as melhores, Alô, alô, Interior.

Decidi iniciar essa crítica tardia assim pra deixar às claras que ao falar de rádio não estou na condição de quem ouviu falar. Nasci em 1970 e apesar de ter televisor em casa (depois de um puta sacrifício!), rádios sempre forem presença marcante. Aliás, lembro que a maior alegria da minha tia era o programa do Elói Santos. Uma vez ele mandou um abraço no ar pra ela, que falou disso o resto da vida. Ser citado por um radialista era o top da celebridade, desde que não fosse numa Patrulha da Cidade da vida.

Quando eu assisti Eternamente Rainhas, produção da Companhia Paraense de Potoqueiros, tive uma outra grata surpresa: eu conhecia a maioria daquelas músicas e sabia a letra de muitas delas, longe de ser um problema, isso me deixou muito feliz e orgulhoso. Pude participar do clima que o espetáculo promove e da festa que muitas senhoras e senhores faziam como se estivessem mesmo num auditório de alguma Rádio, ou com os ouvidos pregados naqueles aparelhos enormes de antigamente. Palmas, gritos, cantoria e até mesmo as antigas animosidades que envolviam os fãs clubes de Marlene e Emilinha.

Eternamente Rainhas é uma pequena enciclopédia, ou um almanaque de algumas das vozes que encantaram e apaixonaram o povo brasileiro a partir do final dos anos 30. Narra em histórias, canções, esquetes e cenas a trajetória de algumas das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, não à toa eleitas pela população como suas rainhas. Como hoje, amadas, imitadas, seguidas. Idolatradas seria o termo mais correto, a ponto das desavenças já citadas e da postura que se adotou a favor e contra Dalva de Oliveira em sua litigiosa separação de Herivelto Martins. Esse fato ganha uma notoriedade e destaque na trama escrita a quatro mãos por Lauro Sousa e Breno Monteiro.

O projeto foi idealizado um ano atrás pelo próprio Lauro, que se juntou ao amigo e sócio no Espaço das Artes de Belém para pesquisar, escrever, selecionar canções, produzir, dirigir e levar aos palcos o que ele chamou de sonho. Um sonho que foi encampado pelo elenco que se tomou de amores por essas mulheres vanguardistas.

A trama narra como Linda e Dircinha Batista, Marlene, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira e Ângela Maria subiram ao panteão das estrelas da arte brasileira, além de citar outras celebridades, como Herivelton Martins e Nilo Chagas - que formavam com Dalva o Trio de Ouro -, o famoso Repórter Esso e o extravagante Cauby Peixoto. As dificuldades de aceitação familiar, os vícios e excessos promovidos pela fama e pela riqueza - ainda que num caráter bem diverso de hoje em dia, onde ostentação é o tom da indignidade artística brasileira. Amores, fofocas, curiosidades e, como não raro num país que não sustenta sua frágil identidade e cultura, um fim de carreira com quase todos e todas no esquecimento, na pobreza e até mesmo uma morte na miséria, distantes das ribaltas e do burburinho caloroso dos fãs de outrora.

Toda essa trajetória já não seria fácil de contar se pensássemos em apenas uma pessoa, quanto mais seis e suas transversalidades. Entendo toda a paixão pensada pelo Sousa e alimentada pela equipe, mas quando pensamos em uma dramaturgia que seja tão precisa quanto interessante e dinâmica, há que se, em algum momento, abandonar a emoção e agir com a razão, metendo realmente uma afiada tesoura nas páginas.

Quando disse que Rainhas é um almanaque, referia-me a ter um número excessivo de informações que se repetiam - algumas - pelo menos uma vez, seja em texto, seja em cena; seis cantoras que por anos lançaram músicas em profusão, como selecionar o que vai entrar nessa play list? É como garimpar um veio extremamente precioso, mas de onde podemos - e precisamos - selecionar as gemas mais preciosas.

Penso que as músicas deveriam compor um grande pout-pourri, intercalar as falas, construir com elas os diálogos. Se as quisessem inteiras, que passassem novamente pelo crivo de uma encenação mais enxuta e reduzidas a um número menor. Declaro que essa é uma opinião absolutamente minha, que concebo encenações que giram em torno dos 60 minutos. Julgo que isso seja confortável para atores e público, por mais interessante e maravilhosa que seja a trama; já vi espetáculos de duas, duas horas e meia, alguns fantásticos, outros enfadonhos e alguns absolutamente desnecessários. Repito que esse é um ponto de vista meu, mas que aplico no caso de Rainhas pelos aspectos já comentados.

O elenco é composto exclusivamente por homens. Uma proposta ousada, uma vez que falamos de mulheres icônicas. Isso também poderia afastar o público mais diretamente alvo da peça nesses tempos de tantas dúvidas e intolerâncias quanto aos gêneros da sexualidade humana. Engano. A maior parte da plateia era composta por senhoras - algumas contemporâneas das homenageadas - e por homens tão entusiasmados quanto.

O cenário realista e os figurinos caprichados, perucas e maquiagem primorosas, traduziam todo o glamour e a beleza da época de ouro da rádio brasileira e suas estrelas. Essa escolha por travestir atores creio, tenha partido das propostas de ação da equipe do Espaço das Artes, que trabalha e ministra cursos sobre as performances drag queens (entre outras ações artísticas). No entanto, Rainhas não é um espetáculo drag, algo que foi trabalhado pelos atores para não imprimir nas interpretações das cantoras o tom superlativo das drag queens.

A peça foi feita naturalista, apresentada à italiana e tem uma narrativa linear e cronológica. Dividida em dois atos, o trabalho ganha força real a partir do final do primeiro quando conhecemos a trajetória da inesquecível Dalva de Oliveira, como já disse, privilegiada na encenação, ganhando a maior cena, digamos, solo, desde o período anterior ao trabalho como cantora, seu casamento catastrófico com Martins e os perrengues vividos numa sociedade patriarcal e até hoje hipócrita, atravessada por canções belíssimas interpretadas numa voz ímpar. Aliás, o espetáculo pra mim é o segundo ato, muito mais vivo e interessante.

As canções foram quase todas dubladas - outro atributo drag - com pequenas inserções ao vivo e a capella e o número final, Cantoras do Rádio, marcha de 1936, composta por João de Barro, Alberto Ribeiro e Lamartine Babo, gravada originalmente por Aurora Miranda e sua irmã Carmem, presente também em Rainhas, cujo número, assim como outro, da novela de rádio, poderiam ser reduzidos e suprimidos, respectivamente. Os atores cantaram a marcha ao vivo, preparados pela professora Lúcia Uchôa.

Das interpretações destaco Leoci Medeiros e Renan Coelho, cujas presenças em cena são belas, mas com fragilidades. Medeiros não consegue nos fazer distinguir claramente os três personagens que interpreta, acabando por misturar seus maneios pessoais e atributos de diferentes caracterizações. Coelho precisa de maior dramaticidade em suas falas. A narração do destino das irmãs Batista careceu imensamente de potência. Rony Hofstatter por ser fisicamente grande, precisa de mais leveza ao assumir uma persona feminina e Jadylson de Araújo - com quem tive a honra de trabalhar em dois espetáculos - deve investir mais em criação de personagem, a fim de diversificar e aprimorar suas interpretações.

O elenco como um todo tinha um problema com as falas. Uma prosódia carregada, sobretudo nos "erres" - sim, eu sei, uma característica da época - que tornava muitos textos incompreensíveis e falsos; Cassio Vitorio, Lennon Bendelack, Nilton Cézar e Wagner Ratis, uns por técnica, outros algo empiricamente, deram contornos mais precisos e verossíveis aos seus alter egos.

Eu disse que assistiria Eternamente Rainhas e levaria minha mãe. Levei. No coração e na lembrança. Tenho certeza de que ela reclamaria do tempo sentada, mas também sei que cantaríamos juntos muitas daquelas canções e talvez eu até ouvisse histórias dela e delas. Voltaríamos juntos pra casa felizes, lembrando de um tempo que foi bom no seu tempo, mas que se firma de qualidade por, décadas passadas, ainda estar vivo, presente, pulsante, mesmo em gerações mais jovens. Algo que, com a mais absoluta certeza, não será o legado destes sampleados e miseravelmente harmônicos tempos de plataformas digitais.

Gratidão, Rainhas. Não gosto desse título, mas julgo que lhes é merecido. Que suas coroas, mas sobretudo vozes, inspirem pelos evos nossos namoros sob uma lua cada vez mais pálida.

15 de Setembro de 2018.


[1] Um cara de teatro.

Ficha Técnica

Montagem Teatral:

Eternamente Rainhas

Produção:

Companhia Paraense de Potoqueiros

Dramaturgia:

Breno Monteiro e Lauro Sousa

Elenco:

Cassio Vitorio, Jadylson de Araújo, Jhonata Scerni. Lennon Bendelack, Leoci Medeiros, Lucas Belo, Nilton Cézar, Renan Coelho, Rony Hofstatter, e Wagner Ratis

Iluminação:

Breno Monteiro

Sonoplastia:

Lauro Sousa

Edição de Sonoplastia:

Lauro Sousa e Lennon Bendelack

Figurino:

Inês Rodrigues e Lucas Belo

Maquiagem:

Thaís Sales

Cenografia:

Breno Monteiro e Lauro Sousa

Assessoria de Imprensa:

Eduardo Auad

Social Mídia:

Cassio Vitorio e Nilton Cézar

Produção Cultural:

João Ribeiro

Produção Executiva:

Lauro Sousa