Seiva Bruta – Por Karimme Silva

01/10/2018

Ato Poético: Árvore de Mim

De: Micheli Campos

Karimme Silva[1]

É preciso muita coragem pra falar de si e da própria história. É preciso muita coragem pra desbravar terrenos até então guardados na própria memória/vivência e conseguir compartilhá-los. É preciso muita coragem para abrir os espaços internos aos outros. É preciso.

O ato poético Árvore de Mim, da atriz/performer/pesquisadora Michele Campos esmiúça essa coragem. Parte final de uma trilogia - após Ritos (2012) e Para Você (2014), seus trabalhos anteriores - este ato traz ao público uma viagem de muitos caminhos e ramificações da atriz. Em sua descrição, ela propõe questões fundamentais para que se compreenda o trajeto:

O que somos além da soma de nossos antepassados?

Quem nos permite escolher quais desses nós precisam ser desatados durante a caminhada?

Quais histórias queremos perpetuar e quais devemos romper?

Falar da própria história exige um enorme mergulho interno. Desbravar as profundezas nem sempre é algo palpável e simples. Michele se desnuda quando apresenta, em corpo e voz, muitos de seus galhos. O ato se dá dentro de um porão, com público reduzido (lotação de 20 pessoas). Porões costumam ser os locais onde se guardam coisas, depósitos, espaços de acúmulo. Lugares dos segredos.

Basta uma rápida visita aos porões que estão por aí para nos darmos conta do quanto eles diferem entre si... E, mais do que isso, basta um exame mais atento a cada porão para nos darmos conta de que eles são construídos, são feitos, de elementos ali colocados e dispostos por obra da ação humana. Eles jamais estiveram desde sempre ali. As verdades de que são feitos esses porões são metáforas. (VEIGA NETO, 2012, p. 277)

É preciso coragem pra abrir os porões internos. Michele não só os abre como nos convida para um chá. É uma maneira de dizer que estamos em casa, que ali não é somente o lugar dela, mas das 20 pessoas que compõem o público.

A iluminação do ato desenha trajetórias: ora minimalista, ora grandiosa, é uma forma de descrever o trajeto da atriz, sua forma de lidar com suas próprias luzes e sombras. Corpo e gestos compõem uma dança com a luz e também, com a falta dela. Para Jung (2011), é comum pensarmos que a sombra só contém aspectos escuros e negativos da personalidade. Contudo, é a sombra que nos dá à dimensão humana, que escancara a realidade, que coloca os nossos pés no chão. Mas que também esconde potenciais ocultos, tesouros inestimáveis que foram desprezados. É um remédio amargo e necessário.

Parafraseando este autor, acredito que a atriz toma esse remédio amargo em grandes doses, para buscar e expressar sua própria cura. 

luz da lua
traga a sua dança
faz soar o sino da lembrança
onde eu sorria
ai eu vivia a pureza
a inocência de sentir
ai mamãe como eu sonhava
ai meu deus eu criava
qualquer gesto sem pedir [2]

Utilizar as luzes de forma lúdica remonta à infância. A atriz traça e tece desenhos para falar de sua origem e família. A voz segue a narrativa, buscando ilustrar as viagens. É como se fôssemos companheiras de viagem, mas uma viagem que ela - e somente ela - é capaz de contar. Buscar os antepassados e as memórias infantis traz um acalanto, ela consegue compor em sua movimentação naquele momento. Talvez guardando energia para falar de outros momentos. As árvores retém seiva para poder sobreviver aos ciclos. 

essa menininha é minha,

me deram preu criar

o gosto de quem cria é saber acalentar 

o gosto de quem cria é saber acalentar [3]

Ao falar de seu processo de gestação, Michele realmente se parte: se parte pra parir, pare a sua parte - e sua arte. Parir faz parte. É o momento de maior fragilidade do ato e também, o de maior força. Ao relatar seu processo conturbado de parir a Lua (adoro essa metáfora), ela se expõe, crua. Embora seja um momento dramaturgicamente mais tenso, o som faz o contraponto com uma música leve. Interessante a ideia de assumir o celular e as caixinhas de som como sonoplastia. A atuante fala do passado, mas faz isso no hoje. Não só reconta como revive.

Quem melhor do que uma mulher pra falar o que é parir? Uma que já viveu e vive isso em todos os seus dias. A atriz se mostra como mãe, mas antes disso se mostrou como criança, filha, neta e também, como mulher, artista, viajante. É o encontro do passado com o presente e ela costura bem as amarras do espaço-tempo. Mostra-se como o tronco que rege todas as outras camadas, galhos, flores e frutos. Clorofila-se por aquele porão, em corpo, voz e expressão. Sublima-se.

Destaque para a cenografia que ambienta o porão-casa, as paredes-rabiscos, a vassoura-folha. Ali percebe-se a construção de um local familiar e muitas vezes não visitado. Todos nós temos porões; nem todos temos a coragem necessária para abri-los e remexer no que está guardado. Michele tem coragem e isso é propulsão para compor um trabalho forte, visceral e sincero. Assinando pesquisa, dramaturgia, direção e performance, a artista se desdobra em várias e também em uma só. Ramificada, sua árvore emerge em cena como seiva bruta.

30 de Setembro de 2018. 

 

[1] Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA, artista-pesquisadora e mestranda do programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/UFPA). 

[2] Composição de autoria de Mateus Moura, que assina a concepção musical e a ambientação sonora. 

[3] Idem. 

Referências

JUNG, Carl Gustav. Aion - Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

VEIGA NETO. Alfredo. É preciso ir aos porões. Rev. Bras. Educ. [online]. 2012, vol.17, n. 50. pp 267-282. Rio de Janeiro, Maio/Ago. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n50/v17n50a02.pdf>

Ficha técnica:

Ato-poético:

Árvore de Mim

Pesquisa, Dramaturgia, Direção e Performance:

Michele Campos de Miranda

Visualidade Cênica, Concepção e Desenho de luz:

Patrícia Gondim

Pesquisa e Confecção de Figurino:

Maurício Franco

Concepção Musical e Ambientação Sonora:

Mateus Moura

Colaboração Cênica:

Waldete Brito

Contra-regragem e Apoio Técnico:

Amanda Melo

Arte Gráfica e Design de Mídia:

César Aires

Fotos e Filmagem:

Rodolfo Mendonça

Assessoria de Comunicação (textos, redes sociais e imprensa):

Dani Franco

Produção:

Lívia Conduru Gurjão Sampa