Severino e os hiatos históricos em Belém do Pará (1958-2018) – Por Edson Fernando
Montagem Teatral: "Morte e Vida Severina"
Montagem da Escola de Teatro e Dança da UFPA em comemoração aos 60 anos da primeira montagem (1958) pelo grupo Norte Teatro Escola do Pará.
Edson Fernando[1]
Atmosfera de morte. Meus olhos procuram um refúgio que me permita descansar em meio ao amontoado de fenecimento que se espalha por todos os lados, em escala crescente e, aparentemente, sem previsão de término iminente. Mas a paisagem árida se impõe, existe, resiste, persiste, não desiste de mim, mesmo que eu, desde o primeiro instante, quisesse me desvencilhar dela. Sou fraco pra morte. Sou daqueles que, nos velórios, presto minha homenagem ao ente querido a distancia, evito olhar na cara do morto. Sou fraco pra morte. Não sei explicar, mas não consigo conciliar tanta vida, tantas lembranças, tantas experiências passadas ao lado de alguém com a imagem do corpo prostrado, inerte, inanimado, imóvel, enfim, do corpo desfalecido do defunto. A experiência no velório de meu pai, nesse sentido, foi um grande desafio, pois passei a madrugada inteira ao lado dele numa capela mortuária. Em meio às conversas e pequenas distrações ao lado de amigos e parentes escapava uma olhadela, um soslaio e, então, me pegava olhando para o rosto dele, assim, tão desamparado e desprovido de tudo. Nas diversas vezes que isso ocorria, as lembranças que vinham, inevitavelmente, eram memórias da vida difícil, da pobreza e miséria que passamos quando morávamos numa palafita localizada no Jurunas das décadas de 70 e 80. Talvez minhas experiências marcadamente ligadas à carência, privação, escassez e penúria me façam perceber a morte como uma coisa iníqua, perversa, malfazeja e não como um ciclo natural da ordem do universo. Evito, então, olhar para a face do morto, sempre que possível, para não desencadear esses pensamentos desconfortáveis que me trazem desassossego.
Outra coisa que também me proporciona aflição é a atmosfera do velório. Os cantos - sobretudo os cânticos católicos -, as orações, os soluços, as lágrimas, a dor extravasada num misto de choro e lamentação, me devasta a alma numa fração de minutos. Sou fraco pra morte. Talvez, ainda, minha experiência de adoção, criação e perda de animais domésticos tenha intensificado um pouco mais o meu desconforto com a morte. Certa vez, a Videl - minha felina caçula, da raça siamesa - me levou ao estado de estarrecimento e às lágrimas compulsivas. Ela havia parido seis gatinhos - quase uma barrigada rodrigueana. Dos seis, apenas cinco sobreviveram às primeiras seis horas de vida, pois um nascera com a coluna vertebral exposta e com as patinhas traseiras atrofiadas. Mesmo eu tendo o levado às pressas, e ainda com vida, para apreciação da médica veterinária - profissional que acompanhou a saúde de todos os meus filhos de estimação - ele não sobreviveu e foi doado para auxiliar nas pesquisas da medicina veterinária da UFRA, pois, segundo me explicou a doutora, tratava-se de um caso raro de malformação congênita. Até ai, tudo bem, não foi esse o caso que me estarreceu. Dos outros cinco gatinhos sobreviventes, quatro se desenvolviam normalmente nos primeiros seis dias de vida e, apenas um, parecia manifestar certo raquitismo. Não me deu conta do que estava acontecendo. Na madrugada do sexto para o sétimo dia, sou acordado pelos miados de desespero da Videl, arranhando exasperadamente a porta do meu quarto. Ao abrir a porta, ela invade o quarto com o seu filhote raquítico na boca e o repousa sobre minha cama. Quando o segurei, ainda estava com pulsação bem fraquinha. E em instantes, morreu em minhas mãos. A Videl pulou no meu colo e passamos o resto da madrugada, assim, um ao lado do outro: a Videl miava; eu chorava.
Contei o caso para a doutora que, imediatamente, pediu para examinar a gata. Constatou que somente quatro tetas estavam produzindo lactação normalmente; as outras estavam obstruídas. O gatinho da madrugada havia morrido por inanição. Videl pediu ajuda, mas foi tarde demais. Sou fraco pra morte.
Anos depois, minha cadela chamada Dezoito me proporcionaria outra experiência dura com a morte ao contrair cinomose, uma doença canina provocada por vírus. Minha cadela sofreu com todo o quadro degenerativo da doença e nas últimas semanas eu a alimentava na boca. Ela literalmente definhou e numa tarde, quando eu regressara do trabalho, já a encontrei sem vida estirada em sua caminha. Mesmo acompanhando seu quadro clínico irreversível, o que mais me cortou o coração foi o fato dela ter morrido sozinha. Os vizinhos contam que eu gritei de desespero. A partir de então, enterrei todos os meus filhos de estimação no quintal de casa - Dezoito, Videl, Magrelinha e Deamarialuciaalinenandinha - e isso, certamente, foi um aprendizado duro que guardo na relação com a morte. Por isso tudo, tenho clareza que sou extremamente fraco com a morte. E consequentemente também, por isso tudo, que os meus olhos, desde o início, buscavam refugio para longe daquela paisagem de morte a minha frente.
Sem opção, no entanto, diante da paisagem desértica, miserável e desumana, sigo pelo caminho devastado, pela trilha de perecimentos que se avolumam e se intensificam com o passar do tempo. Severino Retirante vai à frente. Segue solitário e sorumbático, como um cicerone desterrado da própria humanidade. Embora seu semblante seco e sua voz entristecida me desmotivem, alimento sempre o desejo de encontrar ao menos uma centelha de vida em sua saga e, por isso, acompanho seus passos.
À medida que avançamos - ele em desânimo crescente, eu, cada vez mais, lutando contra o estado de letargia - as imagens do passado e do presente se apresentam em flashes intrigantes que me fazem pensar sobre os possíveis hiatos históricos que assolam uma nação inteira em avançado estágio de decomposição das memórias. Do ontem, vejo o rosto sorridente do nordestino miserável, maltrapilho, desnutrido, explorado pelo homem e castigado duramente pelo sol e pela seca. O hoje, no entanto, me furta a imagem dos corpos e me presenteia apenas com o registro dos "paletós de madeira", um caminhão cheio deles. Terras distantes - nordeste e norte do Brasil - atadas pela mesma sorte fúnebre. É preciso reatar o fio da meada dessa história sangrenta que continua nos dizimando. Esquecer, nesse caso, é sinônimo de apagamento, de silenciamento e, o que é pior ainda, a possibilidade de invenção e/ou inversão dos fatos históricos bem aos moldes da ofensiva canalha, tacanha, criminosa e fundamentalista que se alastra como praga, pelo Brasil. Nesse caso, é a morte travestida sob a aura de deus, da família e dos valores cristãos. Sou fraco pra morte, mas desse último tipo, tenho nojo!!!
Essas imagens me provocam um lampejo de vida. É o suficiente para me manter atento aos passos de Severino Retirante, embora sua jornada continue insípida e linear a cada nova paragem. Sempre que seus passos cessam, ainda que temporariamente, a morte atravessa o seu caminho. A morte, sempre a morte. E como sou fraco pra morte, não me concentro nela, não me concentro nos corpos que vem e vão, nas covas que se abrem, na urna funerária que desfila num lamento cantado de incelenças. Concentro minha atenção no hiato histórico entre as gerações de artistas de teatro na cidade. E enquanto a morte é representada em métrica poética, penso no quanto de memória se encontra fora da métrica dos nossos registros históricos, considerando apenas os últimos sessenta anos de intensa produção artística na cidade. São seis décadas, não é pouco. Haveria mais morte do que vida nesse período de tempo? Onde foi parar a vida de tantos grupos de teatro, de tantas montagens icônicas, de tantas lutas e enfrentamentos políticos? Quem ousará escrevê-las? Como abordar e contar sobre memórias tão peculiares, memórias que se constituem como legítimas "posições pela carne".
Meus pensamentos viajam enquanto a jornada de Severino Retirante segue monótona. O sujeito me olha nos olhos, procura cumplicidade para o drama representado a minha frente, mas tudo se passa de um modo inverossímil, preso demais a métrica épica do poeta. Olho para os quadros que apresentam e aprofundam a jornada de Severino Retirante e observo o predomínio do estado de imersão na palavra, na poesia. O curioso, no entanto, é que esse mergulho não consegue me fazer penetrar nas imagens vivas que os versos do poeta desenham no tempo e no espaço. Me sinto apartado da palavra e, consequentemente, da vida que há nelas. O tom, predominantemente, declamativo instaura uma atmosfera de solenidade fúnebre e contribui para me deixar a margem dos acontecimentos. E, desse lugar marginal, começo a pensar se o Severino Retirante de hoje pretenderia apenas fazer uma homenagem ao Severino Retirante de sessenta anos atrás. Se este é o propósito da nova jornada, ele se cumpriu de modo categórico. Mas acredito que essa hipótese seja pouco provável, afinal a história tem nos ensinado que devemos conhecer o passado para entendermos a trama labiríntica do presente.
Os hiatos históricos me voltam à mente. Penso, imediatamente, nos diversos grupos de teatro da atualidade, nos diversos territórios criados por artistas da cidade para a produção e apresentação dos seus trabalhos. Como chegamos neste ponto? O que nos levou a essas estratégias drásticas? Quando a luta e o enfrentamento com o poder público tomou outra direção? Do Severino Retirante, com participação no I Festival de Teatro de Estudante do Brasil, realizado em Recife em 1958, ao Severino Retirante que precisa se abrigar no teatro-residência em 2018. São apenas sessenta anos que nos levam de uma participação nacional marcante, para uma política de resistência em espaços de propriedade privada dos artistas. Do macro ao micro, uma série de atravessamos históricos que precisam ser considerados, que precisam ser contados com urgência para que as estratégias em curso também ganhem consistência histórica e dialoguem com os novos fazedores de teatro nessa cidade.
Sou saudosista de uma época do teatro em Belém onde nos reconhecíamos como CLASSE. Embora eu tenha começado a fazer teatro no bairro do Jurunas em 1994, migro pro centro da cidade e encontro com a CLASSE Teatral na I Conferência Estadual de Teatro, promovida em 1997 pela FESAT - Federação Paraense de Autores, Atores e Técnicos de Teatro. A conferência realizada no Teatro Experimental Waldemar Henrique me apresentava, dentre outras coisas, a principal pauta de luta da categoria teatral na ocasião, isto é, a ocupação do próprio espaço do teatro Waldemar Henrique, fechado para uma reforma que se arrastava há bastante tempo. Lembro do evento ocorrer com entrada pelos fundos do teatro, pois a fachada do mesmo ainda continuava interditada pela reforma.
Nessa época, conheci artistas aguerridos que participavam de mesas redondas ao lado de gestores culturais e que mostravam o cu como forma de protesto. Essa militância destemida lutou e conquistou o Teatro Waldemar Henrique, deixando o então governador, Almir Gabriel, encurralado, quando o mesmo resolveu realizar a cerimônia de reinauguração do prédio com as portas fechadas para a CLASSE. Sua excelência só conseguiu sair do teatro escoltado pela tropa de chope da PM, escorraçado sob vaias e cusparadas.
Diversos capítulos dessa história de enfrentamento precisam ser contados, em detalhes, para que se compreenda o alcance das estratégias de sobrevivência adotadas hoje, por artistas que sequer se reconhecem como uma CLASSE. Muitos desses personagens continuam fazendo história em outras frentes de batalha. É preciso ouvi-los para que os hiatos sejam atenuados, principalmente para que a nova geração de artistas de teatro consiga articular sua história recente com o marco do Severino Retirante de 1958.
Pensar nisso, enquanto observo a atmosfera de solenidade fúnebre do Severino Retirante, me faz intuir que meu incômodo, talvez, repouse na falta do grito destemido de outrora. Essa atmosfera em cena me angustia pelo fato deu só conseguir perceber os ecos do passado, mas nenhuma conexão com o presente. Daí eu não sinto vida, pois Severino Retirante e Cia esbarram na densidade da poesia, na densidade dos versos, na densidade das palavras, na densidade do dizer a morte e na densidade do dizer a vida. É preciso despender muita vida até pra defender a densidade da poesia que diz da vida e da morte.
O milagre da vida que ocorre no final da jornada de Severino Retirante me faz pensar se o fio de esperança, que a obra do poeta anuncia no plano da fábula, servirá também de alento para o plano da nossa realidade. Ações como a remontagem de Morte e Vida Severina e o evento acadêmico que a justifica - I Seminário Nacional de Memórias Cênicas na Amazônia, sob a coordenação geral (e hercúlea) do professor Denis Bezerra - me parecem indicar caminhos pelos quais os hiatos históricos, talvez, possam ser enfrentados.
Que as ciganas do teatro, em nossa cidade, nos guiem pelos fios da memória e anunciem tempos de luta e combatividade, revigorando-nos pelos auspícios do deus que dança, bebe, fode e grita karalho em praça pública. Chega de estiolamentos. Sou fraco pra morte.
Evoé.
28 de agosto de 2018.
[1] Ator, diretor e professor de teatro. Coordenador do Projeto de Extensão TRIBUNA DO CRETINO.