SimBIOse de uma pOeMa im(S)Und(J)O – Por Raphael Andrade

08/12/2019

Montagem: mEU pOEMA iMUNDO

Montagem Teatral: Coletivas Xoxós

Raphael Andrade[1]

Turvo

Desassossego

turvo a turva mão do sopro contra o porão escuro

menos

mais

mais que

escuro menos que mole e duro menos que fosso e muro velho:

menos que furo escuro mais que escuro: claro como água? Como vontade? Como fome?

claro

mais que claro

claro: coisa alguma e tudo (ou quase) um bicho que o universo fabrica

e vem sonhando desde

as entranhas azul

era a elefanta azul

era o dumbo azul

A égua azul

teu cu

meu kool

tua gengiva

igual a tua barriga

que tem a mesma função que a minha

que parecia sorrir entre as cicatrizes da noite escura

POEMA IMuNdO!

entre os cheiros de flor e bosta como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras)

eu não sabia

mas tu sabias

fazer girar a vida com seu montão de estrelas e oceano entrando-nos em ti

dramaturgia.

Estranha

grande

trela

mais que bela

afinal, quem sintetizou o que é ser bela?

mas como era o nome dela?

Não era Isaurica nem Vera

nem Cacau nem Gabriela

nem Andreia nem Maria

Seu nome

seu nome era...

Perdeu-se na carne mole e fria

Perdeu-se na livraria

perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia

perdeu-se na profusão das coisas acontecidas

constelações de alfabeto

noites escritas a giz

pastilhas de aniversário

sessões da tarde

enterros

corsos

gozos

crianças

banho no quintal

livros

livre

rizomas

É ela...

mudou de cara e cabelos

mudou de olhos e risos

mudou de casa

e de tempo:

mas está lá

perdida

teu nome em alguma estante

em algum instante

na cenografia

na diretoria

na artista

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em Belém do Pará, à escrivaninha, tentando descrever sob uma luz de coito, num eterno enigma? mas que importa um nome debaixo deste teto de telhas encardidas

vigas à mostra entre cadeiras e plásticos

se perdem

pela vida caem

tão reais que se apagaram para sempre

Ou não?

Não sei de que tecido é feita minha carne

E essa vertigem que me arrasta por avenidas e falos entre cheiros de gás.

e mijo

a me consumir como um facho-corpo sem chama,

acima do arco-íris

perfeitamente fora do rigor cronológico

sonhando

Garfos enferrujados

facas cegas

cadeiras furadas

das pedras da Rua de um Malcher que ninguém viu

cobertos de limo

tintas iconográficas no porão

voais comigo

sobre continentes e mares

E também rastejais comigo

pelos túneis das noites clandestinas sob o céu constelado da Amazônia

entre fulgor e lepra debaixo de lençóis de lama e de terror

vos esgueirais comigo,

armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,

dobrais comigo as esquinas do susto e esperais

esperais que o dia venha

E depois de tanto

que importa um nome?

Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo: te chamo aurora

te chamo água

encenadora

PACA

te descubro nas pedras coloridas dos artistas de teatro

nas aparições do sonho

- Que faço entre coisas? - De que me defendo?

Num cofo de quintal na terra preta cresciam plantas e rosas (como pode o perfume nascer assim?)

Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam pés de tomate

Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins mais verdes que a esperança (ou o fogo de teus olhos)

Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade sob as sombras da guerra de si

o sabão de andiroba

Young

Deleuze

Guattari

Trajetórias de si

Resiste.

Haicai

cinco, sete e cinco sílabas

merda

puta que o pariu

cerveja!

Mas a poesia não existia ainda. Xoxós. Cheiros. Roupas. Olhos. Braços. Seios. Bocas. padrões. Reggae. Risos ácidos. ENGOLE o Choro!

Tum tum

Tum tum

Tum tujm

Mundo sem voz,

coisa oPaca.

Lira singela? Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos.

Remédios.

Méritos.

Do corpo. Mas que é o corpo? Meu corpo feito de carne e de osso. Esse osso que não vejo, maxilares, costelas

Flexível armação que me sustenta no espaço que não me deixa desabar como um saco vazio que guarda as vísceras todas funcionando

como retortas e tubos fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento e as palavras e as mentiras e os carinhos

mais doces

mais sacanas

mais sentidos

para explodir uma galáxia

de leite

devaneios

sorrisos

giros

no centro de tuas coxas no fundo de tua noite ávida

cheiros de umbigo e de vagina graves

cheiros indecifráveis como símbolos do corpo

do teu corpo

do meu corpo

corpo que pode um sabre rasgar

meu corpo cheio de sangue que o irriga como a um continente ou um jardim circulando por meus braços por meus dedos

enquanto discuto caminho

lembro

relembro

Teu sangue

feito de gases que aspiro

dos céus da cidade estrangeira

com a ajuda dos plátanos

e que pode - por um descuido - esvair-se por meu pulso aberto

Teu corpo

que deitado no chão vejo

como um objeto no espaço

que mede 1,68m

140 delírios

Que já foi duzentos lírios.

Circunferência

E que és tu: essa coisa deitada

barriga pernas e pés com cinco dedos cada um (por que não seis?) joelhos e tornozelos para mover-se sentar-se

levantar-se

ar

ser

teu corpo

que é teu tamanho no mundo

teu corpo feito de água

e cinza que me faz olhar Andrômeda,

auto do coração,

Mercúrio

Paixão

Madalenas

Tufão.

a toda essa massa de hidrogênio e hélio

que se desintegra e reintegra sem se saber pra quê

Corpo teu

cOrpO

corpo que tem um nariz

assim

uma boca

dois olhos e um certo jeito de sorrir de falar que tua mãe identifica como sendo de sua filha

Que tua filha identifica como sendo de sua avó

corpo que se para de funcionar

provoca um grave acontecimento na família: sem ele não há ar

não há

AR

TE

e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta estarão esquecidas para sempre

corpo-facho

corpo-fátuocorpo-fato

corpo-penico

e que desde então segue pulsando como um relógio num tic tac

que não se ouve (senão quando se cola o ouvido à altura do teu coração)

tic

tac

tic

tac

ao alcance do tato

nas livrarias

nos bares

tic

tac

tic

tac

pulsando há mais de 50 anos

esse coração oculto

pulsando no meio da noite,

da chuva

debaixo da capa, da saia, da camisa debaixo da pele,

da carne,

teatro da pessoalidade

dramaturgia do onírico

combatente clandestina

teu coração de menina

Cuíra!

Como é o nome dela?

Ninguém consegue descrever

nem em poesia!

PS: Texto escrito a partir do ensaio aberto "meu poema imundo", hibridizado com o "poema Sujo", de Ferreira Gullar. Uma simbiose sinestésica que desassossega! Evoé

08 de dezembro de 2019.


[1] Homem de Teatro.

Ficha Técnica:

Montagem:

mEU pOEMA iMUNDO

Equipe de Criação:

Performance:

aNDRÉA fLORES.

Encenação e Dramaturgia:

wLAD LiMA.

Iluminação:

iARA sOUZA.

Figurino:

gRAZI rIBEIRO.

Fotografia e Design Gráfico:

dANIELLE cASCAES.

Elementos Cenográficos e Layout da Fachada:

bRUTUS dESENHADORES.

Assessoria de Imprensa:

LeNISE oLIVEIRA.

Direção Cênica e Sonoplastia:

LeOCI mEDEIROS.