SimBIOse de uma pOeMa im(S)Und(J)O – Por Raphael Andrade
Montagem: mEU pOEMA iMUNDO
Montagem
Teatral: Coletivas Xoxós
Raphael Andrade[1]
Turvo
Desassossego
turvo a turva mão do sopro contra o porão escuro
menos
mais
mais que
escuro menos que mole e duro menos que fosso e muro velho:
menos que furo escuro mais que escuro: claro como água? Como vontade? Como fome?
claro
mais que claro
claro: coisa alguma e tudo (ou quase) um bicho que o universo fabrica
e vem sonhando desde
as entranhas azul
era a elefanta azul
era o dumbo azul
A égua azul
teu cu
meu kool
tua gengiva
igual a tua barriga
que tem a mesma função que a minha
que parecia sorrir entre as cicatrizes da noite escura
POEMA IMuNdO!
entre os cheiros de flor e bosta como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras)
eu não sabia
mas tu sabias
fazer girar a vida com seu montão de estrelas e oceano entrando-nos em ti
dramaturgia.
Estranha
grande
trela
mais que bela
afinal, quem sintetizou o que é ser bela?
mas como era o nome dela?
Não era Isaurica nem Vera
nem Cacau nem Gabriela
nem Andreia nem Maria
Seu nome
seu nome era...
Perdeu-se na carne mole e fria
Perdeu-se na livraria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
sessões da tarde
enterros
corsos
gozos
crianças
banho no quintal
livros
livre
rizomas
É ela...
mudou de cara e cabelos
mudou de olhos e risos
mudou de casa
e de tempo:
mas está lá
perdida
teu nome em alguma estante
em algum instante
na cenografia
na diretoria
na artista
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em Belém do Pará, à escrivaninha, tentando descrever sob uma luz de coito, num eterno enigma? mas que importa um nome debaixo deste teto de telhas encardidas
vigas à mostra entre cadeiras e plásticos
se perdem
pela vida caem
tão reais que se apagaram para sempre
Ou não?
Não sei de que tecido é feita minha carne
E essa vertigem que me arrasta por avenidas e falos entre cheiros de gás.
e mijo
a me consumir como um facho-corpo sem chama,
acima do arco-íris
perfeitamente fora do rigor cronológico
sonhando
Garfos enferrujados
facas cegas
cadeiras furadas
das pedras da Rua de um Malcher que ninguém viu
cobertos de limo
tintas iconográficas no porão
voais comigo
sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas sob o céu constelado da Amazônia
entre fulgor e lepra debaixo de lençóis de lama e de terror
vos esgueirais comigo,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
dobrais comigo as esquinas do susto e esperais
esperais que o dia venha
E depois de tanto
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo: te chamo aurora
te chamo água
encenadora
PACA
te descubro nas pedras coloridas dos artistas de teatro
nas aparições do sonho
- Que faço entre coisas? - De que me defendo?
Num cofo de quintal na terra preta cresciam plantas e rosas (como pode o perfume nascer assim?)
Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins mais verdes que a esperança (ou o fogo de teus olhos)
Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade sob as sombras da guerra de si
o sabão de andiroba
Young
Deleuze
Guattari
Trajetórias de si
Resiste.
Haicai
cinco, sete e cinco sílabas
merda
puta que o pariu
cerveja!
Mas a poesia não existia ainda. Xoxós. Cheiros. Roupas. Olhos. Braços. Seios. Bocas. padrões. Reggae. Risos ácidos. ENGOLE o Choro!
Tum tum
Tum tum
Tum tujm
Mundo sem voz,
coisa oPaca.
Lira singela? Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos.
Remédios.
Méritos.
Do corpo. Mas que é o corpo? Meu corpo feito de carne e de osso. Esse osso que não vejo, maxilares, costelas
Flexível armação que me sustenta no espaço que não me deixa desabar como um saco vazio que guarda as vísceras todas funcionando
como retortas e tubos fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento e as palavras e as mentiras e os carinhos
mais doces
mais sacanas
mais sentidos
para explodir uma galáxia
de leite
devaneios
sorrisos
giros
no centro de tuas coxas no fundo de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina graves
cheiros indecifráveis como símbolos do corpo
do teu corpo
do meu corpo
corpo que pode um sabre rasgar
meu corpo cheio de sangue que o irriga como a um continente ou um jardim circulando por meus braços por meus dedos
enquanto discuto caminho
lembro
relembro
Teu sangue
feito de gases que aspiro
dos céus da cidade estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode - por um descuido - esvair-se por meu pulso aberto
Teu corpo
que deitado no chão vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,68m
140 delírios
Que já foi duzentos lírios.
Circunferência
E que és tu: essa coisa deitada
barriga pernas e pés com cinco dedos cada um (por que não seis?) joelhos e tornozelos para mover-se sentar-se
levantar-se
ar
ser
teu corpo
que é teu tamanho no mundo
teu corpo feito de água
e cinza que me faz olhar Andrômeda,
auto do coração,
Mercúrio
Paixão
Madalenas
Tufão.
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra sem se saber pra quê
Corpo teu
cOrpO
corpo que tem um nariz
assim
uma boca
dois olhos e um certo jeito de sorrir de falar que tua mãe identifica como sendo de sua filha
Que tua filha identifica como sendo de sua avó
corpo que se para de funcionar
provoca um grave acontecimento na família: sem ele não há ar
não há
AR
TE
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta estarão esquecidas para sempre
corpo-facho
corpo-fátuocorpo-fato
corpo-penico
e que desde então segue pulsando como um relógio num tic tac
que não se ouve (senão quando se cola o ouvido à altura do teu coração)
tic
tac
tic
tac
ao alcance do tato
nas livrarias
nos bares
tic
tac
tic
tac
pulsando há mais de 50 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite,
da chuva
debaixo da capa, da saia, da camisa debaixo da pele,
da carne,
teatro da pessoalidade
dramaturgia do onírico
combatente clandestina
teu coração de menina
Cuíra!
Como é o nome dela?
Ninguém consegue descrever
nem em poesia!
PS: Texto escrito a partir do ensaio aberto "meu poema imundo", hibridizado com o "poema Sujo", de Ferreira Gullar. Uma simbiose sinestésica que desassossega! Evoé
08 de dezembro de 2019.
[1] Homem de Teatro.
Ficha Técnica:
Montagem:
mEU pOEMA iMUNDO
Equipe de Criação:
Performance:
aNDRÉA fLORES.
Encenação e Dramaturgia:
wLAD LiMA.
Iluminação:
iARA sOUZA.
Figurino:
gRAZI rIBEIRO.
Fotografia e Design Gráfico:
dANIELLE cASCAES.
Elementos Cenográficos e Layout da Fachada:
bRUTUS dESENHADORES.
Assessoria de Imprensa:
LeNISE oLIVEIRA.
Direção Cênica e Sonoplastia:
LeOCI mEDEIROS.