Sincronia e Diacronia na Casa Análoga - Por Raphael Andrade
Montagem Teatral: A Casa de Bernarda Alba.
Autor: Federico García Lorca
Montagem: Cursos Técnicos da ETDUFPA -
Ator, Cenografia e Figurino.
Raphael Andrade[1]
Imergir nas obras do poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca (1898-1936) requer um minucioso trabalho para desvendar as finas camadas que brotam de seus textos dramáticos e poemas. À medida que nos lançamos aos seus textos, densos prismas se apresentam numa urdidura de ações que enlaçam o mistério de seu sentir e existir numa potencialidade atemporal. Sobretudo no que se refere ao simbolismo que o autor utiliza como suporte poético predominante e, que, necessita ser codificado ou decodificado na sua obra literária, ao situaro homema mulher em outra realidade reinventada.
Sua obra literária e, concomitantemente teatralizada, provocam uma hibridização entre os gêneros lírico, épico e dramático, no qual é possível resgatar experiências de gerações anteriores que se preparavam para fazer frente a múltiplos problemas sociais e que podem perfeitamente fazer analogia diacrônica e sincrônica com qualquer política-social-cultural que caminha para a retrogradação.
A título de exemplo, podemos visualizar tais analogias em A Casa de Bernarda Alba (1936), última obra escrita pelo supracitado autor um mês antes do desaparecimento do seu corpo, em que o mesmo foi "supostamente" condenado à morte pelo simples fato do mesmo ser Artivista, Homossexual e "Socialista". Condenação esta que, gracias a Dios, não se faz presente em terras tupiniquins! (TSC. TSC. TSC). Tal conflito se deu em plena ebulição de uma Espanha polarizada num conflito antagônico entre republicanos apoiados pelo movimento Socialista e pelos Nacionalistas que foram apoiados por grupos conservadores falangistas e carlistas e, pasmem: pela santa madre IGREJA.
Todavia, segundo os documentos históricos, não havia a presença do maior subvertedor do mundo em cima do pé de goiabeira. Pois o mesmo se encontrava profilático eternamente pregado em uma cruz para servir de modelo para a história, no qual a missão é estar "acima de todos", em uma Espanha "acima de tudo". Análogo ao tempo hodierno? Respondo sem hesitar: sí, por desgracia! Nesta perspectiva, nada mais oportuno do que apresentar em pleno século XXI, no país bonito por natureza e que possui um povo heróico, misógino e homofóbico colosso, que brada por anacéfalos retumbantemente a volta do regime ditatorial.
A apresentação cênica realizada pelos cursos técnicos de formação em ator, figurino e cenografia da ETDUFPA, desvela em seu enredo metaforicamente a condenação silenciosa de uma sociedade cercada de rígidos princípios - (i)morais, patriarcais e religiosos. A supradita peça, ambientada em uma localidade rural, é demarcada no espaço intradoméstico, em que vivem (ou apenas vegetam), a matriarca autoritária Bernarda, suas filhas solteiras, sua mãe histérica, a empregada e mais a governanta em um conflito vigilante e castigante de um luto forçado por oito anos seguidos, segundo reza o tradicionalismo familiar. O conflito lorquiano destaca, também, a supremacia das aparências da elite em relação à essência e à individualidade, visto em pontos cruciais como as ações de Alba ao esconder à velha mãe ou do desinteresse da condição humana no âmbito familiar.
A apresentação teatral acerta no alvo ao apresentar nas dependências do ICA a trama, porém resvala em pequenos pontos, como: a oportunidade de fazer a apresentação à moda Émile Zola (1840-1902), ou seja, reproduzir mimeticamente a "realidade" de maneira naturalista. Tal espelhamento ortodoxal seria facilmente introduzido na peça, pois já havia fragmentos naturalistas na bebida servida, na ambientação da sala, nas vestimentas e na comida posta. Todavia a naturalidade cênica é fragmentada pela iluminação que, a meu ver, só atrapalha o ambiente, pois a mise-en-scène temo suporte de pequenos lustres que não são usados na trama, a não ser quando a mesma finaliza (ahora?), algo que, poderia a própria governanta acender ou apagar as luzes, além de ficar crível, daria um tom taciturno pelas nuances das sombras das atuantes.
Entretanto, a direção não opta pelo naturalismo na iluminação nem na sonoplastia, esta última causa estranhamento pelas nuances de uma peça densa ao ser interpolada por sons aleatórios e, digamos, nada coerentes com o enredo. Apesar do estranhamento musical, a peça não perde seu brilho - brilho este que ganha tonalidades em azul e âmbar quase avermelhado das nuances entre dia e noite feitos pela iluminação que perpassava a janela da casa, contribuindo, neste enredo, em dar uma fagulha de vida dentro da casa carregada monocraticamente de ambientação e figurinos tórpidos. Figurinos esses, icônicos, muito bem desenhados e produzidos, assim como um visagismo milimetricamente equilibrado para não beirar o burlesco.
Sobre o elenco e direção, de antemão os parabenizo pela coragem e por terem aderido à provação de refazer o clássico que, indubitavelmente, não é fácil para as os atuantes-diretoras em dar conta da obra atemporal lorquiana. Mormente por se tratar de um elenco do primeiro ano do curso técnico em ator, mas que conseguiram transpassar a dramaticidade que a mesma possui. Ponto este visivelmente mais denso nas apresentações do elenco feminino, em que há uma linearidade crível nas atuações, dando a entender (ao menos a mim enquanto espectador), que as mesmas eram, realmente, uma família. Apesar de pequenos deslizes de algumas atrizes na dicção e no jogo cênico de não interagirem nos picos de energia que não se sabia se era da cena, se eram realmente picos na luz ou falha da iluminadora. O ponto alto no que tange a atuação fica a cargo da dramaticidade pungente representada pela atriz que veste a persona Bernarda Alba, na qual possui uma presença cênica impactantemente assombrosa.
Em relação ao elenco masculino, há uma disparidade nas apresentações, apesar de ser, incontestavelmente, mais difícil os atores representarem mulheres, sobretudo em não cometer o ato falho de cair no estereótipo, algo que, aprazivelmente, não foi o caso. Ponto para o olhar cênico da direção, que não deixou a subversão do gênero cair na caricatura. Não obstante, o referido elenco não possui a mesma densidade do grupo feminino, além da dessemelhança nas atuações como dito anteriormente, alguns atores se sobressaem, como: a própria Bernarda Alba com seu tom caliginoso pontual. Martírio, a filha corcunda, que tem força cênica - apesar do volume de voz disforme. A persona que representa a avó, que possui ótima desenvoltura, apesar de beirar o over. Porém o texto tem esse corte que quebra o clímax, num desnecessário aporte de senilidade nupcial (do texto à cena) em um interregno de comicidade na progressão dramática da proposta. Além da atuação da governanta que, de forma sutil, consegue dominar a cena.
Neste enredo, a peça de Lorca ganha condimentos para que se faça um ótimo espetáculo. Como as da cena da Adela, a subversiva revolucionária das mulheres de Lorca, que rejeita o código de honra fundado na manutenção a todo custo das aparências e no credo da superioridade masculina. Adela afirma seu direito absoluto à própria sexualidade, sua paixão proibida com Pepe e seu livre arbítrio. O ponto alto do espetáculo é a quebra da bengala por Adela, ao qual a mesma cognomina de "vara", que, a meu ver, o autor metaforicamente representa um falo, isto é, a superioridade masculina vigente, pois aristocratas usam deste suporte como símbolo de poder.
Este enredo, como já foi dito anteriormente, carrega simbolismo sem ter resquícios de panfletagem, onde podemos fazer analogias na representação da Espanha em plena guerra civil representada pela coercitividade de Alba, e as filhas seriam as representantes do povo - povo este reprimido, assustado, incapaz de enfrentar o sistema que o sufoca, embora desejoso de mudanças e liberdade. Lorca consegue esculpir o texto como se fosse um grande escultor prestes a fazer uma Pietá em mármore, ao modelar e esmiuçar o enredo em uma tensão crescente que explode no desfecho da trama.
Portanto, A casa de Bernarda Alba é um grito de liberdade frente ao normativo, à repressão, mostrando que coragem às vezes é a saída para a liberdade. Que vozes são caladas e outras são libertárias. Como a voz do poeta subversivo. Não obstante, esta última não será calada enquanto houver pessoas que procuram ler mais do que as postagens de redes sociais. Por indivíduos que procuram ir ao teatro e estabelecer liames na contemporaneidade hodierna. Possibilitando, neste enfoque, uma visão humanitária, pois a coerção é uma corda pendurada no telhado.
No mais, felicitações a todos os envolvidas, o mérito do grande espetáculo não está apenas na obra literária, mas de cada um que dá vida ao maior ofício de todos. Representar e tentar epistemologicamente ensinar que arte teatral além de insurgente (e tantas outras possibilidades), é urgente para a sociedade que busca equidade e discernimento da política-social-cultural que vive. Obrigado por terem salvaguardo que a morte de Garcia Lorca não foi em vão. GARCIA, PRESENTE! Silêncio...
16 de Dezembro de 2018
[1] Ator, Performer, Graduando em licenciatura em Teatro; Participante do projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Ficha Técnica:
Montagem:
A Casa de Bernarda Alba
Elenco:
Bernarda - Laís Bezerra e Amorim
Poncia - Tarcísio Gabriel e Julis Albuquerque
Angústias - Melissa Souza e Danilo Rocha
Adela - José Neto, Anna Clara Andrade e Carla Jardim
Martírio - Marina Di Gusmão e René Coelho
Madalena - Arthur Perdigão, Alice Leite Carneiro, Pedro Dias e Brenda Brito
Amélia - Sarah Prazeres, Lucas Del Corrêa, Vanessa Duarte e Gabriel Oliver
Maria Josefa - Matheus Magno e Tertuliana Lopes
Criada - Wanessa Guimarães e Wesley Santos
Mendiga - Gilson Santos, Letícia Moreira e Ramon Dekken
1ª mulher - Carla Jardim, Pedro Dias, Anna Clara Andrade e Arthur Perdigão
2ª mulher - Gabriel Oliver, Vanessa Duarte, Lucas Del Corrêa e Sarah Prazeres
3ª mulher - Letícia Moreira, Gilson Santos e Karla Cozta
4ª mulher - Ramon Dekken e Karla Cozta
Moça - Brenda Brito, João Paulo Brígida e Alice Leite Carneiro
Prudência - João Paulo Brígida, Karla Cozta, Marcelo Nazeano e Letícia Moreira.
Cenografia:
Anne Loureiro, Madu Santos, Mih Sousa, A.J. Takashi, E' Carvalhal, Daniel Lisboa, Jamile Freitas, Manuela Soutello, Nadie Bentes, Nicolle Bittencourt e Thiago De La Cruz.
Figurino e Maquiagem:
Socorro Ribeiro, Paulo Galvão, Marcilene Gonçalves, Isabel Moura, Waxel Silva, Jéssica Lais e Lucileide Cardoso.
Iluminação:
Criação coletiva do grupo de cenografia.
Direção:
Karine Jansen e Larissa Latif.
Assistência de Direção:
Amanda Linhares e Rick Brandão.
Coordenação de cenografia, figurino e iluminação:
Iara Souza
Sonoplastia:
Vitor Menezes
Arte:
A.J. Takashi.