Teatro, Fé e Malandragem na Encruzilhada: Caminhos Abertos – Por Karimme Silva
Montagem Teatral: "Sagrada Malandragem"
Montagem: Cursos Técnicos da ETDUFPA.
Karimme Silva[1]
Onde está a tua fé? A pergunta que aciona a chamada para o espetáculo "Sagrada Malandragem", resultado do segundo ano dos Cursos Técnico de Teatro, Figurino e Cenografia da Escola de Teatro e Dança da UFPA - ETDUFPA, pode ser uma pergunta retórica. Afinal, quem tem a resposta para algo não mensurável como a questão da fé? E quando a fé se manifesta fora dos chamados "espaços convencionais"? E quando o teatro sai do teatro e vai para a rua, mas não somente: e quando a arte cênica entra no bar? Com quem o teatro bebe e com quem ele senta na mesa nessa esquina?
Chegar cedo é bom para observar as diversas preparações: os garçons botando as mesas, os músicos afinando seus instrumentos/vozes, uma iluminadora ajustando um dos três pontos de focos da iluminação, cenógrafos organizando seus objetos e o praticável estrategicamente em um dos cantos dessa encruzilhada. Rufino (2019, p. 02) afirma que "a encruzilhada é a boca do mundo, é um saber praticado nas margens por inúmeros seres que fazem tecnologias e poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos". Teatro é poética/tecnologia pra espantar escassez: teatro na rua, caminhos abertos. É importante destacar a iniciativa inédita (e ótima) da direção em encenar em um bar que já existe, possui uma temática específica e funciona perfeitamente como o cenário da peça, sendo o espaço do/no acontecimento. Ação que transborda o espaço dos muros institucionais e das caixas pretas.
Já tem gente bebendo na calçada, essa noite vai ser boa, #sextou. Muitas pessoas estão de branco, dentro e fora do espaço cênico, que também é a frente do bar, O Canto do Zé, no bairro da Cidade Velha. Esse espaço cênico também é a rua, e todo o movimento ao redor. Teatro na rua é muita onda. Mas Zé, malandro que só ele, já está em casa e nos convida pra entrar - ou seria, pra sair? São três estes espaços, bar-calçada-rua, ali onde tudo e mais um pouco costuma acontecer. O Canto do Zé tá ligado, aberto e com suas luzes acesas. O Zé vai cantar - e contar.
Malandro
Sou eu que te falo em nome daquela
que na passarela é porta estandarte
e lá na favela tem nome de flor
Malandro
só peço favor de que tenhas cuidado
as coisas não andam tão bem pro seu lado
assim você mata a Rosinha de dor
Lá,
laiá, laiá, laiá, laia laia
O baque forte do tambor anuncia aquele cortejo que em alguns momentos lembra a algazarra de um Auto do Círio misturado com a Festa da Chiquita: é brilho, gente, grito, movimento, risada. Tudo que a rua (e o bar) apreciam. E um cortejo que se preze tem um belíssimo estandarte reafirmando: chegou a SAGRADA MALANDRAGEM. Atrizes/atores em movimentos bem-marcados, para assinalar o início do sagrado. EVOÉ, teatro na rua, após dois anos de casa e máscara! Estamos vivos, sobrevivemos! Nem tanto assim, nem como gostaríamos, nem de uma forma justa, nem no meio do projeto de morte desse desgoverno Bozotário. Mas ainda estamos aqui. Para assistir, para encenar. Para celebrar. Andá com fé eu vô, a fé não costuma faiá, já tocava mais cedo uma música do Gigante Gilberto Gil. Se o Gil, que é malandro baiano, tá dizendo, quem somos nós pra contestar?
Mas não dá pra falar de fé sem falar da descrença. Não dá pra falar de vida sem mencionar a morte. Estes pares, opostos-complementares se apresentam de mãos dadas no texto; quando o bar na cena se aproxima do ambiente na feira, é possível ver/imaginar espaços públicos, de livre circulação de GENTE, alvoroço, movimento, vida. É onde tudo circula e por onde tudo passa. Entre uma cena e outra, não dá para ignorar os garçons do bar circulando em segundo plano, botando o bar real em jogo com o bar da peça, tá tudo junto, o atendimento continua, o trabalho não pára, o trabalho só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce - parafraseando um pouco meu querido malandro-do-mangue-malungo de Pernambuco, Chico Science. Esse foi/é malandro até hoje, agora e sempre.
O par fé/descrença na
cena está nas mães que procuram seus filhos, em quem se perde (e se encontra)
nas ruas, nos dizeres divinos-profanos que atravessam a cena correndo de uma
ponta a outra, do praticável à calçada. Tudo é dito em voz alta, como a rua
pede, e esse texto que se intercala com o som não se perde, só se encontra.
Entre um malandro e outro, um samba e outro, se percebe quem cada um destes malandros
é, tal como conta/canta o malandro sambista Bezerra da Silva:
Malandro é o cara que sabe das coisas
Malandro é aquele que sabe o que quer
Malandro é o cara que está com dinheiro
E não se compara com um Zé Mané
Também - e obviamente - existem as MalandrAs. Elas não são poucas, entram e saem fortes, com suas belas vestes vermelhas, as danças andanças de cigania e as vozes/futuros na palma das mãos. Marias, mulheres que narram e abordam em seus corpos toda a força e também, todos os assédios que uma mulher sozinha (seja na rua ou num bar) infelizmente ainda sofre. Maria Madalena-Padilha-Mulambo-Navalha na Carne do feminicídio, com os dados, registros e fatos no texto. Afinal, teatro é e não é também uma verdade recontada? Nesse momento DELAS, chegam outras duas mulheres fortes na memória. A primeira, a multifacetada malandra Elke Maravilha com sua voz Selvática afirmando - e parecendo prever e descrever o que foi visto/sentido na cena; a segunda, malandra-diva-entidade, Elza Soares, sobrevivente de abusos, que contou/cantou muito do que viveu antes de deixar o legado e a saudade:
Vãs as imagens delas conforme a sua semelhança
bailarão lança e festança
extirparão o sumo da memória criminosa
Refarão a história e a prosa de tuas eternas inquisições
de fogueiras em beiras de abismos baderneiras flamejantes ciganas
-
E quando o samango chegar
Eu mostro o roxo no meu braço
Entrego teu baralho, teu bloco de pule
Teu dado chumbado, ponho água no bule
Passo e ainda ofereço um cafezin
Cê
vai se arrepender de levantar a mão pra mim
Vejo Elza-Elke ELas nessas ciganas que dançam quando denunciam, que bebem quando bradam, que andam enquanto apontam. É necessário apontar tudo aquilo que de alguma forma ainda incomoda, e fazer isso na rua para que todos ouçam é uma das tantas vidas que o teatro permite, além das graças e desgraças da vida real. Outro momento em que a realidade encontra a cena (ou seria o inverso?): a abordagem consciente e sensível sobre a pandemia. Como dito no início deste texto e também em cena: "sobrevivemos", mas muitos não podem mais assistir teatros, nem beber nos bares, nem andar nas ruas. É preciso pensar no quanto a sobrevivência e a morte continuam próximas, seja na arte ou na vida. Outro momento da montagem remete ao lúdico, aos interiores e suas tantas histórias; a dupla Miller-Mélqui, os pescadores, (ou seriam os Malandros do iMaginário?) seguram o que a cena pede e apontam a possibilidade de condução da/para a memória. Como afirma o poeta e professor Paes Loureiro (2021, n.p.): "o devaneio é uma viagem no riomar da imaginação". As ações nesta cena se dão em um par que se intercala e não se perde, atenção aos detalhes de quem conta e sustenta a atenção aos momentos. Texto belo e sensível. O momento da fila para a leitura das mãos mostra onde a fé (e a cena) cabe e se organiza. O corpo, o tato e a escuta de quem quer saber seu próprio futuro pelas mãos no jogo com o ator Marco Antônio Mabac registra diferentes possibilidades de uma percepção ainda maior do que os sentidos alcançam.
Sagrada Malandragem conta/canta/mostra que a fé também toca e escuta. Fala de fé por meio da arte. Mostra que fé não é concretude, mas possibilidade. Que não é um conceito unicamente religioso, mas uma condição humana para continuar existindo. Que o teatro (com sua cenografia, iluminação, figurino) só existe onde se acredita. Que a rua é um dos maiores espaços e estados de vida acontecendo todos os dias. E que a vida só acontece onde esses movimentos se encontram e se acessam. Vida longa, Malandragem!
19 de julho de 2022
[1]Artista-pesquisadora. Mestra em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará - PPGARTES/UFPA, na linha de pesquisa de Poéticas e Processos de Atuação em Artes. Artesã de cena, palavra e som. Escritora. Intérprete-criadora no projeto musical MANTO. Atriz e Colaboradora em Pesquisa e Montagem Cênica pela ETDUFPA. E-mail: rose.karimme@gmail.com
Referências
ARAGÃO, Jorge. Malandro. In: ARAGÃO, Jorge. Verão. Ariola,1983.
GIL, Gilberto. Andar Com Fé. In: GIL, Gilberto. Um Banda Um. Warner Music Brasil, 1982.
MARAVILHA, Elke. In: BUHR, Karina. Selvática. YB Musica, 2015.
SCIENCE, Chico. A cidade. In: SCIENCE, Chico; ZUMBI, Nação. Da Lama ao Caos. Chaos, 1994.
SOARES, Elza. Maria de Vila Matilde. In: SOARES, Elza. A Mulher do Fim do Mundo. Circus, 2015.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Mórula Editorial; 1ª edição, 2019.
O devaneio é uma viagem
no riomar da imaginação.
Entrevista com o Professor Paes Loureiro. Select-Art, 2021. Disponível em: <https://www.select.art.br/o-devaneio-e-uma-viagem-no-riomar-da-imaginacao/>. Acesso em: 11 de maio de 2022.
FICHA TÉCNICA
Elenco:
Criolinhoo
Deise Ferreira
Evs Cris
Felipe Cordeiro
Joyse Carvalho
Karina Diaz
Kesynho Houston
Lorena Bianco
Marco Antonio Mabac
Melquisedeque Matos
Miller Alcântara
René Coelho
Romualdo Baccaro
Ruthelly Valadares
Serejo
Vanessa Lisboa
Wagner Ratis
Xviccy
Yasmin Ramos
Coordenação de Cenografia
Paulo de Tarso
Cenografia
Manuela Soutello
Assistentes de Cenografia
Leeandra Lee Vasconcelos
Deolinda Oliver
Jéssica Castro
Beatriz Melo
Camila Santos
Tertuliana Lopes
Figurino
Luciano Cantanhede
Asther Ak'Kox
Coordenação de Figurino
Graziela Ribeiro
Colaboradores de Figurino
Romário Alves
Rosana Alves
Tiana Ferreira
Yago Nunes
Lilia Lima
Dramaturgia:
Colaborativa
Dramaturgismo:
Flávio Negrão
Sarah Prazeres
Coreografia Final
Flávio Negrão
Design do Cartaz:
Karina Diaz
Sarah Prazeres
XViccy
Luciano Cantanhede
Direção Musical
Thales Branche
Músicos
Diego Vattos
Pawer Martins
Estagiária:
Aline Borges
Encenação e Direção Cênica:
Andréa Flores
Marluce
Oliveira