Teatro, Performance e REperformance - Sinestesias de uma Anima Híbrida – Por Raphael Andrade

18/12/2019

Montagem: Arauandê - Os Rios de Minh'alma.

Montagem Teatral: Cursos Técnicos em Ator, Cenografia e Figurino Cênico da ETDUFPA.

Raphael Andrade[1]

Shalom,

Os gêneros artísticos: "TEATRO... PERFORMANCE...", com reticências e em disjunção - fazem parte do enunciado introdutório de algumas postagens nas redes sociais d@s atuantes do espetáculo Arauandê - Os Rios de Minh'alma, convidando o público para vislumbrar a referida peça. Tal anunciado, fez com que eu criasse expectativas em torno da obra, pois gostaria de ver se haveria dicotomia ou hibridização entre Teatro e Performance. " - Bobagem minha", pensei. Pois não podemos delimitar a arte da performance, porque na sua gênese ela já nasce interdisciplinar, mas, posteriormente, retruquei minha própria análise: "- Mas o teatro, hoje, também é uma arte heterogênea! Contudo, podemos delimitar o que seria ou não teatro, então, não podemos, também, tentar delimitar o espaço da performance?"

Neste imbróglio, acho interessante explanar sobre algumas visões sobre esse termo que está em alta na Arte Contemporânea. Mas afinal, o que seria performance? De antemão, proponho que não é possível responder essa pergunta de maneira sintética, sobretudo por ser um campo que articula conceitos complexos e múltiplos (híbridos e interdisciplinares) e a visão de cada autor que se debruçou em analisar tal campo, diverge ou sobrepõe teoricamente a questão fulcral do que seria performance, mas podemos trazer à tona algumas pistas do que seria este fazer artístico tão presente na arte, mormente a dissidente.

Começo a análise, portanto, com a visão do teatrólogo Marvin Carlson (2010), que considera que o termo performance se tornou popular nas artes, na literatura e nas ciências sociais, compôs do conhecimento que tentam analisar e entender essa espécie de atividade humana. Carlson afirma que a performance pode ser compreendida como:

Comportamento que requer a presença física de seres humanos ou animais especializados ou treinados que demonstram certa habilidade frente a uma audiência. Segundo essa visão e aproximando-a do campo da Comunicação, podemos compreender que realizar a performance é exibir-se a alguém. Por essa via, que retoma as formulações de Erving Goffman, Paul Bouissac, Richard Bauman e Richard Schechner, podemos compreender que performance (do verbo to perform) implica em desempenho de um papel (perspectivas artística e social) frente a observadores, convocados também a integrarem e participarem da performance. (2010 p. 12)

De uma maneira geral, como podemos ver, o autor considera que a performance tem o intuito de mostrar algo a alguém; até aí, nenhuma novidade, pois todos os tipos de especificidades artísticas são para mostrar algo para o (a) espectador (a), porém, escolho a fala deste autor, porque o mesmo ratifica que um mapeamento completo do termo performance é impossível, dada a grande diversidade de contribuições por autores de diferentes visões, no qual reconhece que há uma disputa entre os mesmos sobre o conceito de performance. Porém, na perspectiva de tentar entender o que o termo expressa, se faz necessário trazer alguns conceitos que podem desanuviar a vista para esta palavra de cariz polissêmica e, em consequência disso, ter uma compreensão mais rica deste conceito.

Para o norte-americano Richard Schechner, um dos maiores nomes dos Estudos da Performance e fundador do The Performance Group,

[...] Embora a performance no seu sentido mais lato, possa caracterizar o modo de qualquer atividade, a performance no seu sentido mais estrito, é parte constituinte de vários plays, jogos, desportos, teatro e ritual (apud LIGIÉRO, 2012, p.37).

Neste enredo, Schechner nos revela que, a performance pode ser vista desde o campo social até o fazer artístico, ou seja, no nosso cotidiano performamos nossas ações, desde quando acordamos até nos deitarmos, assim como no jogo, ao presenciarmos (ou estarmos no lugar dos jogadores) o desempenho da performance (igualmente nos desportos), e há, também, a performance presente em ritos, como na missa católica, em rituais xamânicos e ademais rituais religiosos ou não. Você deve estar se perguntando: " - O que esse cretino quer falar com toda essa história?". Bom, para que ninguém durma lendo esta crítica, continuarei com a parte que mais nos interessa: o termo performance no que tange à arte.

Podemos vislumbrar vários conceitos de como se deu o nascedouro, ou ao menos pontuar os antecedentes da referida arte performática, contudo por ser uma arte híbrida e interdisciplinar (como já foi pontuado anteriormente), não há possibilidade de chegarmos a uma conclusão incontestável sobre como a mesma se originou, todavia podemos destacar e vislumbrar, de modo breve, alguns movimentos artísticos nas artes visuais do século XX, os quais tiveram grande importância na abordagem deste fenômeno.

Dentre tais formas de expressões, pontuarei duas vertentes: 1 - Happening: manifestação de improvisação híbrida das artes visuais e das artes cênicas, esta última sem texto nem representação que traz novas possibilidades de experimentações; 2 - Body art ou "arte do corpo" que traz o corpo humano como suporte de intervenção e que utiliza, na maioria das vezes, a técnica de pintura corporal. Portanto, estas duas tendências são alguns segmentos da arte que se nutriam reciprocamente e transmutam-se para novas possibilidades, em que se começa a cognominar: Arte da Performance.

No entanto, para alguns teóricos, a concepção da reperformance como arte reprodutiva, isto é, feita e apresentada mais de uma vez, é inapropriada. Como sugere a americana fundadora da Performance Studies International Peggy Phelan (1997), que alega:

A performance, num sentido estritamente ontológico, é não reprodutiva. E é essa qualidade que faz da performance o parente pobre das artes contemporâneas. A performance estorva os maquinismos suaves da representação reprodutiva necessários à circulação do capital. (1997, p.173).

Opa, a fala da autora começa a esmagar nosso calo! Contudo, faz sentido (apesar de ser uma visão retrógrada), porque o fazer teatral é, na grande maioria das vezes (redundantemente, mesmo) reprodutivo, desde os ensaios até o espetáculo. E outrossim, alguns atores desvelam que o performer não representa o outro (dimensão mimética), isto é, não se personifica um outro eu, o reformista não atua em nome do outro como no teatro, isto é, não se pode ser uma Julieta de Shakespeare, mas, sim, performar em seu próprio nome. É interessante este olhar, por isso trouxe para dialogarmos, mas, hoje, como o teatro também se hibridiza ao transpor no palco pulsões e afetos que são do próprio performer, logo, podemos, conjuntamente, fazermos essa hibridização entre teatro e performance.

Mas e quanto a arte performática não ser reprodutiva? Bom, para isso, existe uma potente neologia conceitual denominada com o prefixo re, qual seja: REperformance, que é meu objeto de estudo ultimamente. A reperformance ainda possui um alicerce recente e controverso, uma vez que, a performance tenha surgido como arte efêmera e não repetível, todavia, nos últimos anos, alguns (poucos) artistas como Marina Abramovic, Yoko Ono e Pina Bausch tendem a se relacionar com esta nova maneira de realizar uma performance, melhor dizendo, de reapresentar uma performance. Em consonância com esta nova metodologia, a denominada "vó da performance", Marina Abramovic, acredita que, a única maneira de documentar uma performance, é a reperformance da própria performance, no qual elucida melhor neste excerto:

Este novo modelo proposto [reperformance] poderia dar à arte da performance, que iniciou como um movimento transitório, uma fundamentação estável na história da arte. Conduziria a um diálogo melhor entre artistas de performance de gerações diferentes e garantiria uma posição mais clara para a performance como uma disciplina mais artística. (2011, p.11, grifo do autor)

A partir do trecho acima, descrito pela performista (2011), podemos fazer uma analogia ao que transcorre no fazer artístico teatral, em que o texto é encenado várias vezes em locais e de modo dissemelhante, para públicos e dias diferenciados. Esse feito na arte performática, abriria uma fenda profícua para que a performance, arte esta contemporânea e pouco explorada por ter esse teor demasiadamente pouco reprodutível, ganhasse uma nova exploração, uma discussão mais apurada, novos conceitos, possibilidades de criação. E é possível discutir, inclusive, que a reperformance pode contribuir para uma prática de pesquisa relacionada ao aprofundamento e questionamento de preceitos da própria performance, além de perpetuar uma forma de trabalho mais abrangente na esfera da história performática.

Já que estamos em efeito de comparação e diálogo entre performance e teatro, em consonância sobre a importância da nova neologia REperformática, explicito em um dos meus estudos sobre a arte performática, que a não reprodutibilidade poderia não ter a mesma potência que as demais especificidades artísticas, como no fazer teatral, pois:

(...) se imaginássemos as obras de Sófocles, Anton Tchekhov, Brecht, Augusto Boal, dentre outros apresentadas uma única vez, qual repercussão teórica aprofundada teríamos no fazer artístico teatral? Quanto conhecimento, formação, memória, pensamento crítico, técnicas, atualizações de dramaturgias, comparações diacronicamente e sincronicamente perderíamos pela não reprodutibilidade das peças desses autores? Se utilizássemos este viés de apresentar uma única vez, a arte teatral entraria em conformidade com a fala de Abramovic que nos refere que a não reprodutibilidade "seria uma forma de arte morta", e complemento: e enterrada junto aos anais da história. (ROCHA, 2019, p.65)

Bom, ao trazer estes autores para esta crítica, não pretendo dizer o que é certo ou errado; ou o que é teatro e performance, longe disso. Antes de querer responder tais perguntas, o mais importante, a meu ver, é falarmos sobre as possíveis diferenças e convergências desses fazeres artísticos. E a respeito de uma definição para a arte da performance, prefiro acreditar que ela não necessita e tenha exatamente uma definição, sendo uma arte que questiona a própria arte, que faz com que os que participam e o próprio performer interroguem-se a respeito da ação e para onde estão avançando. Contudo, em todo o caso, um padrão conceitual ou análise mais aprofundada são importantes para verificarmos as especificidades no campo performático e teatral.

Neste prisma, acho interessante e válido fazer essa hibridização sobre teatro e performance arte, ao se referir à fábula híbrida (posso chamar de fábula?) Arauandê - Os Rios de Minh'alma, pois a obra traz, na minha visão, no seu âmago, o processo dissidente da arte performática, em que nos possibilita adentrarmos outros tipos de superfícies através do jogo-dramaturgia e ações d@s atuantes.

O espetáculo nos mostra uma recuperação da anima numa ascendência biológica, uma hibridização do [hominum] sapiens, [hominum] demens, uma espécie de radiografia subjetiva do ser - Ser que fica à margem, ou melhor, submerso, "criaturas que habitam um local de passagem", como bem se refere a sinopse. Uma espécie de ritual humano e onírico, na busca incessante e quase selvagem de um quod animalis, perceptíveis significantemente nas ações cênicas sinestésicas.

É uma volta à ancestralidade de um Corpo-crítico, Corpo- múltiplo, Corpos-rito, Corpo-lenda, Corpo-cena, CORPUS-acusação. Se pudesse sintetizar o trabalho das atrizes e atores, poderia ser no sentido de adjetivar tais corpos, no qual nos traz o desmembramento e hibridização paradoxal entre o humano sapiens x demiens x animalis.

A dramaturgia, outrossim, é híbrida e ontológica, entre o prosaico e o poético, que não reprime pulsões, desejos e aspirações individual-coletivo. Em que desvela uma mimese animália em gestualizar e textualizar esteticamente a narrativa como um ato de repulsa obscurantistas da política vigente, que pontua que é preciso retornar ao Mito-Lenda, à ancestralidade que pulsa desde o tom da pele, até o substrato feminino que pontua a obra: a mãe cobra submersa (ou escondida à espera de uma presa?).

Na trama, tudo está em consonância: o som que vem do rio, o porto, o vento, a luminária marcada por efeitos mais vazados que focais, o sonido da chuva noturna que diz quem manda ao abafar a fala das/dos atuantes, a não unicidade visual alegórica dos figurinos customizados com objetos que nos remete ao lixo, a cenografia com figuras que remetem ao totemismo e a arte rupestre de figuras amazônicas. Sem falar na interessante e potente visualidade do barco corroído, que, também, faz parte da visualidade (sobretudo ao iluminá-lo) e, por ventura, está ao lado de fora (à margem) do palco-rio, que faz eu rememorar e parafrasear o poeta: A visualidade bela e solitária do barco destruído e ancorado, à margem, que é o mesmo que, com suas amarras, priva-o de desfrutar da liberdade dos mares... SINESTESIA! Repito: SINESTESIA!

Interessante ressaltar que a obra parti da cidade e se ancora nas experiências performáticas (ou REperformáticas?), na visualidade vigorosa ao apresentar-se às margens da Baía do Guajará, em que nos explicita com narrativas que também estão na ourela, isto é, uma metáfora metalinguística.

Por fim, Poderia descrever ademais sinestesias da hibridização cognominada Arauandê - Os Rios de Minh'alma, desde o mergulho no cerne underground em que a obra desfruta e emerge, todavia, prefiro me deter com o que o espetáculo desvela de mais potente para quem o pôde presenciar: existem coisas na ANIMA humana que só o teatro e a (re)performance podem atingir e desvelar.

SHALOM! EVOÉ!

17 de dezembro de 2019.


[1] Professor-artista-pesquisador. Pós-graduando em Arte e Educação.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVIC, Marina. Documentário. Youtube. 2017. (1h45m49s) Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HtDPHVuMS8c>. Acesso em: 16-dezembro-2019

CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2010.

LIGIÉRO, Zeca. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.

PHELAN, Peggy. A ontologia da performance: representação sem produção. Trad. André Lepecki. In: Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, n. 24, 1997, p.171-191.

ROCHA, Raphael. Flores para Pietá: Análise do Processo Transcultural de um Corpo Sagrado/Subversivo e Reflexões sobre Performance e Reperformance. (Licenciatura Plena em Teatro) Monografia - Instituto de Ciências da Arte, UFPA, 2019. 

FICHA TÉCNICA

ELENCO:

Anna Clara Andrade
Arthur Perdigão
Augusto Neves
Brenda Britto
Carla jardim
Danilo Rocha
Gabriel Di Preto
Gilson Santos
João Santa Brígida
José Neto
Julis Albuquerque
Laís Bezerra
Letícia Moreira
Lucas Del Corrêa
Marina Di Gusmão
Marina Moreira
Matheus Amorim
Matheus Magno
Melissa Souza
Pedro Henrique Dias
Ramon Dekken
René Coelho
Sarah Prazeres
Tarcísio Gabriel
Tertuliana Lopes
Vanessa Duarte
Wanessa Guimarães
Wesley Santos

ENCENAÇÃO:

Andréa Flores e Marluce Oliveira

DRAMATURGIA:

Colaborativa

DRAMATURGISTAS:

Glauce Rocha, Penélope Lima e Vanessa Farias

ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO:

Andrey jandson, Ingrid Gomes e Victória Souza

DIREÇÃO MUSICAL:

Andrey jandson, Gabriel Di Preto e Victória Souza

MUSICISTAS:

Duda Souza e Katarina Chaves

FIGURINO:

Bárbara Jubin, João Paulo Faísca e Leeandra Lee Vasconcelos

ASSISTENTES DE FIGURINO:

Hugo Corrêa, Luciano Cantanhede e Theus Iconic

CENOGRAFIA:

Farid Zahalan, Hanna C. Blue, Juh Silva e Nine Ribeiro

ASSISTENTES DE CENOGRAFIA:

Caê Jestas - CSJ, Felipe Neves, Kildren Pantoja, Lee, Oiran e Rúbia Abati

COORDENAÇÃO DE VISUALIDADE:

Juliana Bentes e Paulo de Tarso

ASSESSORIA DE IMPRENSA:

Lucas Del Corrêa

IDENTIDADE VISUAL:

Tarcísio Gabriel e Sarah Prazeres

FOTOGRAFIAS:

Danielle Cascaes e Tarcísio Gabriel