Todas as formas de amor: o corajoso voo do uirapuru – Por Elcio Lima

30/06/2023

Teatro de Pássaro: Todas as formas de amor.

Montagem: Grupo Junino Uirapuru

Elcio Lima[1]

Junho é um mês que aquece os corações. Com suas festas, cores, devoções, perfumes e sabores. Olhar para o céu cravejado de estrelas, deixar-se banhar pelo luar, o corpo breado, de euforia se arrepia, o peito tomado da alegria que invade e transcende crenças e status. Mês de sorrisos e coreografados passos; de fitas no cabelo, bandeirolas ao vento; paixões de uma noite e amores pra vida inteira. Junho transporta brincantes para uma época eterna cuja chama se esconde, mas nunca morre, vira lenda, tradição, cultura, união e voa livre como pássaro a encantar por onde passa.

Vivemos tempos cujas tradições festivas lutam para se manter vivas em meio ao movediço turbilhão fluorescente de smartphones e redes (dis)sociais. Acotovelando-se entre genéricas dancinhas e insípida arte comercial produzida aos borbotões; aquilo que traduz a identidade de um povo, a gênese da vida cotidiana nativa de remotos tempos, onde a voz era o centro da roda atenta, do riso, da dança e da crença; rema numa contramaré de parcas políticas públicas, minguantes ao status de donativo. Hoje, se a tradição junina permanece, ainda que acrescida, aqui e acolá, de elementos típicos de uma cultura capitalista pós-moderna dominante, deve-se ao esforço de muitas pessoas cujo peito carrega um incontido amor pela beleza do festejo e tudo o que ele representa. Deve-se à herança de família que mantém brincadeiras, danças, saborosas receitas que banqueteiam a tantos, e luta para manter viva a tradição do Pássaro Junino, como, dentre outros, é o caso do Grupo Junino Uirapuru.

O Pássaro Junino, típico da cultura popular de Belém do Pará, especialmente durante as festas juninas, trata-se de uma manifestação artística que envolve gerações de famílias, amigos e convidados que contam histórias divertidas e emocionantes, explorando a comicidade de um povo que enverga, mas não quebra e quando cai, levanta a sorrir das próprias agruras. Um teatro, em sua origem, de rua, popular, belo, símbolo de resistência na "mangueirosa" e em todos os municípios pelos rincões desse vasto Pará.

Na noite do domingo, 25, integrando a programação do Arraial de todos os Santos com a apresentação dos Pássaros e Cordões, o Grupo Junino Uirapuru levou à cena, no palco do Teatro Experimental Waldemar Henrique, uma trama original no que concerne às conhecidas dramaturgias de Pássaros, intitulada Todas as Formas de Amor.

Costumeiramente ancoradas no riso advindo da matutagem, da ingenuidade ou esperteza de quem conta com a própria astúcia para viver, a dramaturgia assinada por Carina Barros, apresenta elementos característicos ligados aos tempos coloniais presente na figura de duas famílias abastadas, bem como os indígenas e as questões de disputas territoriais numa crítica aos velhos coronéis. Além de criar situações e diálogos com outras culturas que por estas bandas aportaram, como povos ciganos e afrodescendentes, fazendo referência direta à miscigenação de um povo que ajudou a construir a cultura brasileira, mas que sofre com o apagamento histórico.

Embora as personagens sejam fortemente marcadas pelo estereótipo visto nos trajes de cena, em certos trejeitos ou mesmo pelo anacronismo que envolve gírias e comportamentos deslocados da época retratada, tudo funciona de modo a construir uma narrativa que, em um primeiro momento, sinaliza caminhar para o lugar comum, servindo como pano de fundo ao já conhecido drama do casamento arranjado.

Na trama, um rapaz movido por nobres ideais e deveras sensato, há de se casar com a moça esnobe e mimada vinda do Rio de Janeiro. Esta, por sua vez, é a personificação do preconceito social para com os grupos que considera inferiores. No dia em que o casal de noivos recebe a visita de boas-vindas dos representantes de uma comunidade indígena (que os presenteiam com o pássaro Uirapuru) e de uma comunidade cigana, eis que o imbróglio começa a tomar forma e, de maneira muito sutil, entrega pistas de que a futura união corre sério risco quando o coração fala mais alto que os pactos sociais. Ainda que a nuvem de confusão e receio se instale sobre a cabeça do quarteto principal, Carlos e sua prometida, Elena; junto dos irmãos ciganos Madalena e Miro; são eles que carregam o conflito e sustentam, cena após cena, o interesse do público, que também se exalta e se anima com as músicas e piadas.

O ponto alto da narrativa acaba tomando rumos de melodrama, relegando o alívio cômico a momentos pontuais, o que julgo uma escolha muito acertada quando se considera que o cerne da questão abriga, dentre muitos aspectos, um tema de relevante destaque: a tolerância (ou a falta dela) ante à diversidade.

Alguns brincantes e espectadores mais arraigados num modelo de moral social pautado na intolerância, possivelmente hão de torcer os lábios em desaprovação à história que coloca em foco o amor entre duas pessoas do mesmo sexo. E é justamente aí que reside a força do texto de Carina Barros sob a direção de Alex Vilar e Ysamy Charchar.

O grupo desenha uma história de amor indubitavelmente polêmica para a época retratada e, mesmo em nosso tempo, ainda tabu para tanta gente. A montagem lança mão de elementos que falam de respeito à natureza, aos diferentes povos e etnias, mas também aponta para a reflexão sobre grupos invisibilizados pelo preconceito e pela aversão às diferentes formas de ver o mundo e de se relacionar com o outro. A delicadeza com que se conduz a narrativa não resvala de modo algum na tentativa forçada da famigerada "lacração", tão pouco cai no erro da erotização das personagens envolvidas no impasse. Isso muito se deve ao modo gradual com que se constrói as relações em cena, mérito de um elenco bem conduzido e de uma direção que funciona ao costurar cenas que divertem, revoltam, fazem pensar, geram torcida e emocionam.

Destaque para a atuação de Flávio Alves, que interpreta Carlos, jovem ator de promissora carreira, que capta as emoções em expressões mínimas sem exagero na construção da personagem. Letícia Henschel, a Elena, poderia ser a vilã mimada do tipo que amamos odiar no elenco de alguma novela, com sua maravilhosa dicção. João Paulo Ramos imprime hipnótica e sensível partitura corporal ao cigano Miro, convincente da alegria à tristeza. Carina Barros, além de sensível e perspicaz na escrita, alegra e encanta com leveza ao dar vida à cigana Madalena, coroando sua performance com a inesperada mudança de personalidade que surge no meio da história. O quarteto conta ainda com colegas de cena que abrilhantam o conjunto e contribuem para a escalada rumo ao clímax da narrativa principal.

Uma visualidade enxuta que se vale de belos figurinos cujos detalhes atraem os olhos sob a iluminação que destaca a riqueza de bordados e aviamentos. A sonoplastia feita ao vivo por meio de atabaques, aliada ao canto envolvente, embala animada dança das mulheres ciganas e das senhoras do terreiro, trazendo frescor à cena em um alegre bailado nas saias de cores fortes que giram e saltam como flores místicas de belo jardim. Por fim, a figura do velho contador de histórias que abre e fecha a cena, soa como acalento, saudosa melodia que rememora tempos outros onde a oralidade era sinônimo forte de conhecimento, aprendizado, ato envolto de sacralidade ancestral tornada herança. Como na própria história dos guardiões do Pássaro Junino Uirapuru, hoje uma herança de pai para filha.

E o espetáculo se encerra em meio a um grande abraço coletivo sob a voz do contador de histórias, idoso, falando aos pássaros. Esperemos nós, que voem alto e levem essa beleza e encanto a novos ares, atravessando tempos em que todos ainda seremos história viva na mente e no coração da nossa gente.

Junho tem esse poder de alegrar e encher de nostalgia a qualquer pessoa. Todo mundo tem uma história de festa junina. Todo mundo sente o peito arder em maior ou menor grau e quase ninguém passa ileso sem derramar uma pequena lágrima de agradecimento, em uma silenciosa oração ou por um deliciosa recordação. Na revoada de Pássaros Juninos que passaram pelo Waldemar Henrique e por toda a cidade, agradeço a oportunidade de ter conseguido assistir Todas as Formas de Amor.

Viva o Pássaro Junino! Viva a cultura! Viva o amor!

30 de junho de 2023


[1] Ator, diretor e autor de contos e dramaturgias. Graduando de Licenciatura em Teatro e Técnico em Figurino Cênico, ambos pela ETDUFPA. Colabora com o projeto de pesquisa O Clown Nosso de Cada Dia e integra o projeto de extensão Tribuna do Cretino.

FICHA TÉCNICA

Todas as Formas de Amor

Produção:

Grupo Junino Uirapuru

Guardiões:

Carina Barros e Carlos Alberto

Elenco:

Aline Jordana, André Nestor, Alberto Aguiar, Bárbara Rodrigues, Camila, Carina Barros, Carlos Boução, Elena Barbosa, Ely Negrão, Flávio Alves, Helena Martins, Helena Joseane, Jefferson Castilho, Jonatas Alves,

João Paulo Ramos, Jonatas André, Josely Oliveira, Julia Fernandes,

Letícia Henschel, Lourdes Brandão, Lucy Freitas, Manuelle Lima,

Márcio Miranda, Milla Machado, Moisés Andrade, Rosália Guimarães,

Suziane Raiol, Victor Cavalcante.

Direção:

Alex Vilar e Ysamy Charchar

Dramaturgia:

Carina Barros