Um bonde chamado: DESTRUIÇÃO do desejo - Por Raphael Andrade.

12/03/2018

Montagem Teatral: Um Bonde Chamado Desejo

Montagem das turmas de 1º Ano dos cursos técnicos de Cenografia, Figurino e Ator da ETDUFPA. 

Raphael Andrade[1]

Procrastinei para escrever sobre Um bonde chamado desejo (1947), resultado interdisciplinar das turmas do 1º ano dos cursos técnicos de ator, cenografia e figurino, da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA). O adiamento deu-se por não saber por onde começar a escrever sobre uma obra que eu estimo demasiadamente. Queria, portanto, fazer uma crítica que poetificasse meu pensamento sobre a obra e no que presenciei no espetáculo. Porém, o Murillo Olegário já havia feito a crítica Désir, désir et plus de désir [2] que tende para a poetização. Mas nunca é tarde para explanarmos o que se passa na subjetividade do que lemos ou presenciamos no fazer artístico, portanto, segue a crítica por outro viés, o analítico.

A dramaturgia do estadunidense, Tennessee Williams (1911-1983) provocou-me com ambivalentes sentidos no que tange ao texto. As arguições que permeiam meu imaginário derivam do mote central da peça. O que queria pôr em prova o autor? A ideia sobre a anomia social durkheimiana? Ou sobre a histeria freudiana? A teoria da seleção naturaldarwiniana com uma representação simbólica na figura de Blanche e Stanley? Vitimologia? E sobre o gênero da mesma, qual melhor condiz com a narrativa- Drama: Tragédia? Tragicomédia? Ou comédia de humor negro?

São questionamentos que permeiam meu imaginário sobre o mote da referida obra de Williams. Não acredito, honestamente, que a peça gire entorno de um drama social inventado em um "belo dia de domingo" por Tennessee. Mas, sim, que tenha como mote a representação de um credo filosófico, político e/ou psicológico para explanar o contexto da época. Nisto, cria-se, a meu ver, a problemática ambivalente do significado do pensamento crítico da narrativa. Mas o que queria revelar Williams? Eu, como entusiasmado leitor de Um bonde chamado desejo, dedico-me a entender a essência da obra. Mas a mesma, cria incertezas sobre o referencial teórico que o autor utilizava. Possibilitando, neste prisma, que a dramaturgia intensifique a particularidade subjetiva das minhas percepções sobre o texto, no qual explanarei a seguir.

A supracitada obra gira entorno da triste história de Blanche DuBois, que inventa um mundo artificial (ou seria histeria da mesma?) para mascarar o horror do mundo que ela tem que habitar. Após tentar fugir do seu passado sombrio, Blanche procura como esteio sua irmã Stella, que é casada com Stanley, mecânico áspero e machista, no qual representa a dura realidade do bairro miserável onde moram. Neste encontro, dois mundos opostos colidem: DuBois, trazendo com ela a aura de gentilidade do Sul, se deixando levar em contra ponto ao mundo diferenciado de seu cunhado, Stanley Kowalski. Se ela está envolta em ilusão, ele representa uma dura realidade: a da sociedade urbano-industrial do pós-guerra e uma camaradagem masculina áspera forjada no quartel. A colisão faz-se inevitável. Porém, mesmo com esse impasse, as entrelinhas do jogo tornam-se uma batalha sexual inconsciente entre ambos, embora o principal campo de batalha esteja dentro de Blanche.

Na dramaturgia, DuBois reverbera ansiedade sexual agonizante de uma menina lutando entre id e ego-ideal e arrasada pelo superego imposto na sociedade no que se diz respeito ao que é certo ou errado. Além disso, ainda tem o pavor de seu passado que a fez fugir de Belle Reve - o suicídio egoísta (vide Durkheim) de seu esposo, criando, nesta perspectiva, uma anomia social com ênfase na homossexualidade do mesmo. Além das referências dos desejos sexuais reprimidos que o texto denota em diferentes termos, a dialética de Blanche, portanto, conserva-se entre intimidade e aprisionamento. No enfoque dos desejos da protagonista, acredito que o motivo pelo qual o autor cognomina o nome da peça - Um Bonde Chamado Desejo - se esvai em poço fundo, pois a narrativa defende exatamente o oposto: mostrando que não é uma história sobre o desejo, mas sim, a DESTRUIÇÃO DO DESEJO. E este desejo, a partir do prisma de Darwin, pode ser sintetizado como um estudo de duas espécies de animais que competem por dominância em um ambiente.

Reiterando que esses são questionamentos que perpassam meu imaginário, posso estar precisando de um psiquiatra, quem sabe? Concluo que nesta guerra, Stanley não sai vitorioso pelo resultado da partida de DuBois, mas sim que Stella é responsável pelo resultado. Williams, cria ambiguidade nas múltiplas representações de palavras abstratas como "realidade", "desejo" e "ilusão" que tem várias lacunas significantes. Assim como as questões de "sã" ou "insano", "verdade" ou "ilusão", questões intrinsecamente não clarificadas na supracitada obra.

Após esta análise textual e como referida, acima, por ser uma obra que estimo e me traz arguições, não poderia perder a encenação resultante da prática de montagem apresentada no ICA. Ao adentrar no espaço cênico, sou instantaneamente atingido pela evocação de Nova Orleans, com seus compartimentos divididos entre corredor, quarto, cozinha e sala ornamentadas com antigos móveis que me remetem a art nouveau, com traços de uma ambientação naturalista, contendo um vigoroso resultado estético. Contando-se também com a ótima indumentária e visagismo, em total identificação com a encenação e com o texto. Mas o absoluto domínio do palco é mesmo da tríade de protagonistas/antagonista. Começando por Blanche (Mariane Malato), com uma energia ágil com uma voz encantadora e inteligência rápida. Seu desempenho é quase incrivelmente verdadeiro. Pois parece que ela pode transmiti-lo com tantas máscaras (mormente nas alucinações) e impulsos que são precisos, reveladores e verdadeiros. Alcançando com sutileza e mestria sua persona que tinha tudo para cair em estereotipias. Contando-se, também, na total identificação com a proposta, a força cênica de Stanley Kowalski (Filipe Marques), que usa em cada modulação física do personagem as sílabas tônicas com precisão e competência de deixar muitos atuantes embasbacados. Porém, estranhamente usava um cigarro que não acendia na cena. Quebrando a linha realista com traços naturalistas como pude ver nas bebidas e comidas reais que o atuante servia. Porém, creio que a ideia de não fumar em cena, partiu de uma questão de proibição de fumar em lugares fechados. Mas poderiam ver outra possibilidade para não causar esse estranhamento na ação cênica (caso não for proposital) compactuando com a crítica do professor Edson Fernando, denominada em Um desejo sóbrio[3]. Sem contar, ainda, com a cativante sintonização de Stella Dubois (Ana Corrêa), com veracidade e impulsos que são precisos e reveladores, estabelecendo intensivas relações emotivas entre a vocalização e a fisicalidade sofredora. Além da maior ou menor incidência participativa dos demais atuantes.

No entanto, por todos os méritos da noite, o perfeccionista em mim questiona alguns pontos, como: a iluminação do espetáculo, que nada ajuda nem na ambientação cênica e nas ações dos estados dos atuantes, sobretudo pois em nenhuma uma oportunidade usar luzes contrastantes - ora vazadas, ora sombreadas - para explicitar os conflitos interiores, entre o ilusionismo e a realidade crua de Blanche e dos demais personagens. Um exemplo claro, era a luz geral em quase todo o espetáculo, onde não delimitava as ações cênicas na cozinha, na sala ou no quarto, parecendo, a meu ver, que os atuantes iriam usufruir os demais espaços, porém não usufruíam os mesmos. Além da falta de ênfase no refletor com gelatina azul, sobretudo porque o autor usa a cor blue (pode ser um delírio meu) para dar ênfase na palavra que para os americanos é sinônimo de tristeza, e em vários momentos do texto, a supracitada cor é referida, sobretudo na vestimenta de Blanche. Uma grata surpresa foi a sonoplastia ter usado o Blues (onipresente no jazz) Blue Moon que nos remete ao lugar da fala de onde o texto se passa, mormente por ser um gênero musical originado por afro-americanos no extremo sul dos Estados Unidos (de onde a personagem Blanche fugiu). Esta música e este gênero musical sintetizam a obra com seu som distintivamente triste e melancólico; a própria palavra blues, em inglês, é sinônimo de melancolia, reforçando minha análise sobre esta cor. No mais, o espetáculo é excelente e bem dirigido/encenado.

Um Bonde Chamado Desejo não deixa de ser, ainda, um espetáculo sintonizado na contemporaneidade ao nos deixar atentos para perceber e questionar o patriarcado, o racismo (alguém percebeu isso na obra?), a violência doméstica contra a mulher, o estupro, a anomia social a partir do prisma da homossexualidade. Contudo, sem precisar deixar clarificado em forma de protestos como estamos acostumados a ver nas peças hodiernas. Ademais, congratulo e DESEJO que este bonde venha depressa, com local e hora marcada.

12 de Março de 2018.


[1] Ator, performer e graduando em licenciatura em teatro; participante do minicurso de crítica teatral: "Por uma crítica menor".

[2] Disponível no endereço do novo site do TRIBUNA DO CRETINO: https://www.tribunadocretino.com.br/l/desir-desir-et-plus-de-desir-por-murillo-olegario/.

[3]Disponível no endereço do novo site do TRIBUNA DO CRETINO: https://www.tribunadocretino.com.br/l/um-desejo-sobrio-por-edson-fernando/

Montagem teatral:

Um bonde chamado desejo

Dramaturgia de Tennessee Williams

Direção:

Claudio Didimano e Karine Jansen

Encenação:

Karine Jansen.

Elenco:

Blanche Dubois - Lays Portela e Mariane Malato

Stella Dubois - Ana Corrêa, Damise Vanessah e Mariana Mothy

Stanley Kowalski - Diego Leal e Filipe Marques

Mitch - Andrew Monteiro, Angelo Garcia e Athos Brenno

Eunice - Assucena Pereira e Penélope Lima

Steve - Ronald Lima e Igor Juan

Pablo - Augusto Neves e Jordan Navegantes

Mulher negra - Kárita Almeida e Lila Moura

Médico - Caio Cezar Dias

Enfermeira- Diana Lins e Vanessa Farias

Jovem cobrador - Hugo Corrêa

Mulher mexicana - Eduarda Mebarak e Rosilene Alves

Preparação Corporal:

Cláudio Didimano

Artes do espetáculo:

Diana Lins e Lays Portela

Arte gráfica:

Diana Lins e gráfica Lima

Divulgação:

Ana Corrêa, Assucena Pereira, Athos Brenno, Caio Cezar Dias, Diana Lins, Eduarda Mebarak e Penélope Lima.

Produção de teaser:

Diego Leal, Jordan Navegantes, Kárita Almeida e Lays Portela.

Fotografia:

Jordan Navegantes, Kárita Almeida, Lays Portela e Rhero Lopes.

Assessoria de imprensa:

Assucena Pereira, Jordan Navegantes e Mariane Malato.

Produção:

Turma do 1º ano do curso técnico em teatro.

Coordenação de figurino e cenografia

Ézia Neves.

Figurino:

Daniel Gomes, Diogo Richier e Ivana Rezende.

Assistentes de figurino:

Claudete Lobato, Daniella Pinheiro, Nanan Falcão e Roseli Feitosa.

Cenografia:

Ruan Ribeiro, Sabrina Pena e Waldir Lisboa.

Assistentes de cenografia:

Breno Paixão e Camila Sousa.

Sonoplastia: 

Demi Araújo e Renan Coelho.

Iluminação:

Breno William Paixão da Silva, Camila Soares de Sousa e Waldir Lisboa.

Realização: 

Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA).