Um desejo sóbrio – Por Edson Fernando

02/02/2018

Montagem teatral: Um bonde chamado desejo.

Dramaturgia: Tennessee Williams

Montagem das turmas do 1º Ano dos cursos técnicos de Cenografia, Figurino e Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA. 

Edson Fernando[1]

Quando todos os desejos se voltam para a construção de uma montagem teatral de vanguarda. Quando todos os desejos se voltam para a desconstrução das dramaturgias clássicas. Quando todos os desejos se voltam para a produção de uma grande encenação teatral que atualize revolucionariamente o conteúdo de dramaturgias consagradas. Quando todos os desejos se voltam para o acúmulo desvairado de elementos e linguagens sob o pretexto de se fazer Performance. Quando todos os desejos se voltam para a negação do texto dramático como paradigma da encenação de uma montagem teatral. Quando todos os desejos se voltam para tornar a montagem teatral mais engraçadinha. Quando todos os desejos se voltam para adaptar uma dramaturgia clássica aos regionalismos locais valendo-se, para isso, de gírias e coloquialismos em voga. Quando todos os desejos se voltam para estabelecer articulações políticas com a conjuntura nacional, estadual ou municipal. Quando todos os desejos se voltam para ideologizar os temas que, muitas das vezes, sequer se fazem presentes em dramaturgias clássicas. Quando todos os desejos se voltam à voracidade dos experimentalismos contemporâneos. Quando todos os desejos se sobrepõem a uma dramaturgia clássica.

Isso é tudo o que NÃO FAZ a montagem teatral "Um bonde chamado desejo", resultado das turmas do 1º ano dos cursos técnicos de Cenografia, Figurino e Ator, da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Segundo pude perceber, o premiado texto do dramaturgo estadunidense, Tennessee Williams, é o eixo estruturante da encenação proposta pela equipe da montagem. É a partir dele que se estabelece uma harmonia entre a interpretação dos atuantes, a cenografia, os figurinos e as intervenções sonoras.

No meu entender, sem a pretensão de inovar em procedimentos de encenação - sejam eles voltados para o trabalho dos atuantes ou da equipe da cenotécnica - a montagem se limita a trabalhar com/e a partir do texto e, assim, oferece um precioso espaço para o exercício da linguagem teatral de todos os artistas envolvidos.

Estabelecida sob esta perspectiva a montagem consegue, com naturalidade, me apresentar o enquadramento no qual a protagonista da trama se encontra envolvida, isto é, sua condição individual em oposição e/ou choque com os valores da sociedade. Observo, então, o requinte aristocrático da refinada, Blanche Dubois, se chocar com sua lascividade manifesta - quase a todo o momento - por Mitch, pelo Jovem Cobrador e no inicio até mesmo por Stanley. O choque também se dá, evidentemente, por sua condição de aristocrata decadente passando a conviver com o bruto operário, Stanley. Sob este enquadramento outros temas são evocados como solidão, carência, violência, sexualidade e delírio.

A opção pela perspectiva de palco à italiana que a montagem elege, vai ao encontro e reforça esses enquadramentos e me proporciona, ainda, acompanhar os desdobramentos da fábula na distância necessária que me permita estabelecer as articulações desses temas com o meu tempo e lugar. A cenografia corrobora de modo decisivo, neste sentido, pois ambienta todas as ações dramáticas na casa de Stanley e Stella: cozinha, sala de estar, quarto do casal, quarto de hospede - neste caso, de Blanche - e banheiro. O famoso efeito do "buraco da fechadura" me permite passear pelos cômodos da casa que se integram de modo harmonioso sem, no entanto, serem realista.

Neste aspecto a montagem, aliás, parece brincar com os limites do acordo ficcional estabelecido a partir dos objetos de cena. Temos, por exemplo, a cozinha com uma mesa, quadro cadeiras, fogão, balcão, armários embutidos na pia e sobre os armários garrafas de bebidas, com bebidas. Os personagens sentam à mesa, bebem, comem macarrão... há carteiras de cigarro, cigarreiras, cigarros, isqueiro, mas em nenhum momentos os cigarros são acesos; os personagens fingem acender e fingem fumar, seja nas cenas mais triviais ou nas mais tensas. Difícil acreditar que este ato seja para poupar os espectadores da inconveniente fumaça dos cigarros. Prefiro acreditar que este recurso se coloca em função de um elemento de estranhamento para quebrar o naturalismo das ações. No meu entender, de fato isso quebra o naturalismo, mas também fragiliza a tensão dramática, principalmente, nos momentos em que o ato de "fumar" é índice da intensificação dos conflitos internos das personagens.

A partir do meu olhar assumidamente leigo afirmo que a visualidade proporcionada pelos figurinos encontra-se em harmonia com a cenografia sem cometer excessos ou faltas gritantes. Este harmonia reforça o elo de verossimilhança com o texto dramático.

Quando o trabalho dos atuantes entra jogo ele opera em consonância com a moldura que será desenvolvida pelo texto dramático, ao longo da montagem, e pela ambientação cênica - cenografia, figurinos e intervenções sonoras. É munido destes elementos - e não tentando se sobrepor a eles - que o trabalho dos atuantes se encorpa, ganha consistência e me manteve ligado à fabula, mesmo com suas duas horas e vinte minutos de duração. Difícil manter uma montagem teatral de duração tão extensa sem momentos de ralentação. Mas, por incrível que pareça, não senti o ritmo ou andamento da montagem comprometido em nenhum momento. O que chegou a me incomodar, um pouco, é o tom caricato que Lays Portela imprime no desempenho da protagonista Blanche Dubois. Neste ponto, talvez o texto de Tennessee Williams, possa ser usado em defesa da atuante, pois a personagem Blanche na medida em que sofre um processo de degradação social e psicológica, oferece pequeno espaço para uma atuação com contornos mais exagerados.

No entanto, Lays talvez nem precise desse álibi fundamentado na dramaturgia, pois sua atuação não envereda no caminho da pura e simples caricatura inconseqüente, muito pelo contrário. A atuante vai dando consistência dramática para Blanche, ao longo da fábula, e nos mostra os diferentes níveis de uma consciência em conflito e a teia diferenciada de relação com os demais personagens. Neste sentido, é importante destacar a atuação de Damise Vanessah desempenhando Stella, pois sua participação como coadjuvante é primorosa e ajuda a colocar em relevo a teia de conflitos presentes em Blanche. O mesmo se dá com Diego Leal - mas em menor escala. O atuante desempenha Stanley, papel antagonista à Blanche. O jogo entre os três - aproximações afetivas, brutal oposição de objetivos, submissão, fantasias e desejos - garante que a trama se mantenha viva e em andamento. O trabalho dos demais atuantes corrobora indo na mesma perspectiva. O jogo entre todos os atuantes, intermediado pelo texto dramático, é espontâneo e vivaz em boa parte da montagem, no meu entendimento.

Observo as vantagens de se trabalhar com uma dramaturgia que concentra sua força em um núcleo menor de personagens - neste caso, em Blanche, Stella, Stanley, Mitch e Eunice -: o trabalho dos atuantes pode ser mais bem delineado, acompanhado e formatado tanto pela direção geral da montagem, quanto pela direção de cenografia e de figurino. As trocas de experiência entre os envolvidos, se bem conduzida, certamente resultará num excelente laboratório para a formação dos alunos dos três cursos técnicos.

Mas evidentemente que isso exige a tomada de decisões delicadas, principalmente no tocante a turma de formação de Ator, pois esta é formada, em média, por mais de vinte e cinco alunos. Então, eleger uma dramaturgia com poucos personagens significa, quase automaticamente, dividir a turma em dois ou três elencos. É o tipo de coisa que eu não arriscaria fazer, por todos os possíveis problemas que isso pode acarretar - lidar com vaidades, duplicar o trabalho da direção, incitar a competitividade entre os alunos, pra citar só alguns. Méritos, então, para a professora Karine Jansen e para o professor Claudio Didimano, pois parecem contornar com muita habilidade estas questões assinando a direção geral da montagem.

São questões, no entanto, que parecem extrapolar o âmbito da disciplina Prática de Montagem - disciplina cujo resultado apresenta à cidade montagens teatrais com os alunos do 1º e 2º Ano dos referidos cursos técnicos - e que merecem ser apreciadas numa dimensão maior, na interface dos três cursos envolvidos e seus respectivos planos curriculares.

Por fim, a montagem teatral "Um bonde chamado desejo" se notabiliza por não ambicionar ser a grande descoberta revolucionária do teatro produzido em nossa cidade. É uma montagem como tantas que a cidade produz, mas com o diferencial de oferecer o exercício da linguagem teatral para seus artistas-alunos. Assim como outras montagens teatrais da cidade ela é passível de questionamentos e objeções.

O maior desafio, talvez, seja o espectador se permitir ser apenas um "espectador normal", diante de uma "montagem normal". E pra isso é necessário redimensionar egos e expectativas.

02 de Fevereiro de 2018.

[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.

FICHA TÉCNICA

Montagem teatral:

Um bonde chamado desejo

Direção:

Claudio Didimano e Karine Jansen

Encenação:

Karine Jansen.

Elenco:

Blanche Dubois - Lays Portela e Mariane Malato

Stella Dubois - Ana Corrêa, Damise Vanessah e Mariana Mothy

Stanley Kowalski - Diego Leal e Filipe Marques

Mitch - Andrew Monteiro, Angelo Garcia e Athos Brenno

Eunice - Assucena Pereira e Penélope Lima

Steve - Ronald Lima e Igor Juan

Pablo - Augusto Neves e Jordan Navegantes

Mulher negra - Kárita Almeida e Lila Moura

Médico - Caio Cezar Dias

Enfermeira - Diana Lins e Vanessa Farias

Jovem cobrador - Hugo Corrêa

Mulher mexicana - Eduarda Mebarak e Rosilene Alves

Preparação Corporal:

Cláudio Didimano

Artes do espetáculo:

Diana Lins e Lays Portela

Arte gráfica:

Diana Lins e gráfica Lima

Divulgação:

Ana Corrêa, Assucena Pereira, Athos Brenno, Caio Cezar Dias, Diana Lins, Eduarda Mebarak e Penélope Lima.

Produção de teaser:

Diego Leal, Jordan Navegantes, Kárita Almeida e Lays Portela.

Fotografia:

Jordan Navegantes, Kárita Almeida, Lays Portela e Rhero Lopes.

Assessoria de imprensa:

Assucena Pereira, Jordan Navegantes e Mariane Malato.

Produção:

Turma do 1º ano do curso técnico em teatro.

Coordenação de figurino e cenografia:

Ézia Neves.

Figurino:

Daniel Gomes, Diogo Richier e Ivana Rezende.

Assistentes de figurino:

Claudete Lobato, Daniella Pinheiro, Nanan Falcão e Roseli Feitosa.

Cenografia:

Ruan Ribeiro, Sabrina Pena e Waldir Lisboa.

Assistentes de cenografia:

Breno Paixão e Camila Sousa.

Sonoplastia:

Demi Araújo e Renan Coelho.

Iluminação:

Breno William Paixão da Silva, Camila Soares de Sousa e Waldir Lisboa.

Realização:

Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA).