Um espetáculo nunca é o mesmo para todos – Por Elizandra Ferreira
Montagem teatral: "Fale com estranho"
Montagem: Coletivas Xoxós
Elizandra da Silva Ferreira[1]
Numa terça-feira de chuva e compromissos ao longo do dia, fui assistir ao espetáculo "Fale com Estranho", no Teatro do Desassossego. Não tinha lido nenhuma sinopse, nem sabia do que o espetáculo tratava.
Foi difícil encontrar o teatro, que fica no porão de um casarão antigo na Cidade Velha. Eu estava atrasada, com medo de ficar na rua escura, bati na porta esperando me avisarem que o espetáculo já tinha começado, mas em vez disso, a porta se abriu e ouvi um "boa noite".
Fui em direção à uma das poucas cadeiras disponíveis. O porão era comprido, porém estreito. Uma mesa de luz e som próxima à porta, três fileiras de cadeiras em cima de compensados, o "palco", ali no chão mesmo, e mais três fileiras. Subi no terceiro "andar" de cadeiras. Talvez por conta da minha altura, o espaço se fez ainda menor, e quase bati com a cabeça no teto do porão. As sensações de ansiedade pelo atraso, aperto e desconforto se fariam pertinentes ao contexto do espetáculo, que despertou essas mesmas emoções em mim.
Assim que me sentei, o espetáculo começou a ser apresentado por uma narração, de voz feminina, suave, mas intensa, introduzindo o tom da peça. A voz dizia que o roteiro era inspirado por teorias de Freud e que a peça trazia um questionamento sobre o famoso ensinamento passado para as crianças de que não se deve falar com estranhos. Me apeguei à essa frase, e busquei no espetáculo elementos que me remetessem a isso, para me ajudar na compreensão do espetáculo e das sensações propostas por ele.
Natanael narra, de forma dolorosa, com bastante uso de objetos cênicos, uma excelente partitura corporal e voz agoniada que, quando criança, contavam a ele a história do homem de areia, que "pegava" as crianças que faziam tolice na hora de dormir. Ele ficou aterrorizado, e passou a temer esse homem. Quando um conhecido da família chega em casa, Natanael na mesma hora o associa ao homem de areia. Então, o menino vê esse homem fazer algo ao seu pai, que morre na mesma hora. Ele fica atordoado, traumatizado com essa imagem. Tenta explicar o que aconteceu aos adultos, mas nenhum acredita nele, escolhendo confiar nesse homem.
Natanael passa, então, toda sua infância e vida adulta delirando com esse acontecimento e vendo o homem de areia levar todos àqueles que ele ama. Esse delírio é transmitido de forma poética e foi totalmente sentido por mim.
Os principais objetos cênicos utilizados foram: 4 sacos com areia, caixotes onde a areia podia ser despejada, um boneco de pano, duas cabeças de feições masculinas, um retrato do pequeno Natanael, um datashow com imagens abstratas, uma luneta, um telefone e um cachimbo.
O que mais chama atenção é o uso da areia, que muitas vezes é jogada pelo próprio protagonista em sua cabeça, corpo e no ambiente, causando a sensação de sufoco, sobrecarrego e mostrando o poder dessa história e experiência sobre a vida do personagem. As cabeças são usadas para representar os delírios de Natanael, que fala com elas como se falasse com os adultos que passaram por sua infância e o homem de areia, porém, ele está sempre sozinho em cena.
O boneco é guiado pelo protagonista, que assim consegue, por alguns minutos, ter algum tipo de controle sobre algo, para compensar sua falta de controle com os acontecimentos ao seu redor. O quadro com sua imagem quando criança também é usado de forma interessante - uma espécie de meia é colocada por trás do retrato, por onde Natanael consegue enfiar a cabeça e sobrepor seu rosto pelo de sua imagem quando criança. Ele rasga esse retrato, ficando com o seu rosto adulto em destaque, o que me fez entender o seu desespero para de alguma forma retornar àquela época e fazer diferente.
A partitura corporal, ou seja, os movimentos feitos pelo ator em cena, são fora do comum. Ele se joga no chão, pelas paredes, se movimenta pelo espaço com o datashow em mãos, comprime e expande o corpo de forma inquietante, como se ele gritasse com o corpo um pedido de socorro.
Quando o espetáculo termina, existe dúvida e confusão entre os espectadores. O que isso significou? Será que aquilo aconteceu de verdade? Acho que esse espetáculo mostra a subjetividade da arte e como cada pessoa a enxerga de uma forma.
Para mim, o espetáculo mostrava toda a dor de um personagem, já adulto, que teve uma experiência invalidada durante a infância. Algo pelo qual já passei, e outras crianças também passaram, como vemos em notícias nos jornais - um adulto, geralmente próximo da família, faz algo com a criança, que ao contar isso aos seus responsáveis não é levada à sério, já que a palavra de um adulto é teoricamente mais confiável do que a de uma criança. Essa questão da nossa sociedade acarreta em problemas profundos, como o abuso infantil.
"Fale com Estranho" me mostrou a necessidade de ouvir as crianças, tentar compreender os sinais que elas mandam e estarmos atentos a isso, afinal, é possível que elas demonstrem que passaram por experiências traumáticas de diferentes formas, seja falando ou tendo diferenças em seus comportamentos. Até porque, as experiências da nossa infância moldam quem seremos como adultos.
26 de julho de 2022
[1] Graduanda em Licenciatura em Teatro
pela UFPA, turma de 2022.
Ficha Técnica
Dramaturgismo, Concepção de Sonoplastia e Atuação:
Leoci Medeiros.
Assistente de Dramaturgismo:
Yasmin Ramos.
Assistente de Direção e Operação de Sonoplastia:
Vanessa Lisboa.
Voz em off:
Naisha Cardoso.
Concepção de luz:
Patrícia Gondin.
Projeto Gráfico, Fotografia Cênica e Operação de Luz:
Danielle Cascaes.
Concepção de Figurino e Maquiagem:
Coletivas Xoxós.
Laboratório de Performance Vocal:
Thales Branche.
Assessoria Terapêutica:
Marcos Vinicius Lopes.
Assessoria de Imprensa e Multimídias:
Lucas Corrêa.
Assessoria Psiconceitual e Direção de Palco:
Roberta Flores.
Encenação e Anatomia Cenográfica:
Wlad Lima.
Direção Cênica:
Andréa Flores.
Residência Artística:
Teatro do Desassossego.
Realização:
Coletivas Xoxós.