Um solo de Wlad sem Wlad, com Wlad – Por Edson Fernando

22/02/2020

Montagem: mEU pOEMA iMUNDO

Montagem Teatral: Coletivas Xoxós

Edson Fernando[1]

... e me deparo com o sorriso largo estampado no chão... saia azul marinho, camiseta de estampa, meias cinza e amarela, tênis cano altinho também amarelo. Ela me abraça no chão; abraço apertado, fofinho, cheio de afeto e leveza. Ela é leve. Caminha suavemente, mesmo estando quietinha deitada no chão. Será? As imagens podem trair. As recordações podem trair... e lá está o Alfredinho namorando a lua - que gargalhada gostosa de ouvir. A aba do boné arriada, descoladamente, pro lado, brinquedos espalhados no chão, ele próprio esparramado no chão... "- Bru bru bru bru bru bru bru bru bru bru..." o foguete decola rumo à lua. Com ele viajo suavemente nas suas molecagens, traquinagens... Alfredinho parece deslizar pelo palco do Rancho Não Posso Me Amofiná e me faz acreditar, nos idos de 1996, na magia do teatro, no encanto e poder de transformação de um gesto bem executado, de uma brincadeira bem vivida, de um olhar brilhante que pulsa energia e me arremata na plateia. Ele brinca, rola pelo chão, gargalha, conversa com seus bonecos, conquista a lua... incrível, aquele garotinho gordo pode tudo. Será? As imagens podem trair. As memórias podem trair... " - Caramba, só falta o teste de interpretação!". Preparo a cena de três minutos criando minha própria dramaturgia pessoal baseada num fragmento de texto sobre a coreógrafa e bailarina norte-americana oferecido como indutor. Fiquei justamente na banca que me causava mais arrepios. E quando já me encontro na sala do teste, o tom suave, o sorriso delicado e acolhedor da recepção me acalma: "- Pode arrumar os teus objetos, preparar a tua música e usar o tempo que precisar pra se preparar. Quanto tiver pronto, pode começar". Começo. Ela me assiste sentada numa cadeira, coluna arqueada pra frente, braços apoiando o peso do tronco do corpo sobre os joelhos. "- Uma mulher, um corpo. Uma mulher, uma dança. Isadora Ducan...". Sigo meu roteiro de ações que havia planejado, mas num olhar de soslaio que lanço em sua direção, consigo captar seu olhar compenetrado na cena, olhar de quem observa se deixando conduzir pela narrativa, sem prejulgamentos ou expressões que pudessem denotar alguma forma de desabono com minha apresentação. Que louco, há pouco menos de três anos eu e "Alfredinho" estávamos enredados no jogo teatral, mas em lados diferentes. Sigo. Concluo com a frase que deixo ecoar pela sala: "- A liberdade ofende. A liberdade ofende. A liberdade ofende...". Será? As imagens podem trair. As lembranças podem trair... Quase a mesma posição anterior, mas agora o que sustenta o peso do seu corpo são os degraus do primeiro Teatro Cláudio Barradas. Aquele teatrinho no porão da antiga ETDUFPA, ali na Magalhães Barata, era muito gostoso e abrigou os delírios iniciais das aventuras de um Macunaíma no "fim do que não tem fim". Eu passei a me acostumar com aquele olhar perscrutador que ora intimidava - por querer penetrar em camadas íntimas da criação pra descobrir quando estávamos "micando" e quando estávamos, de fato, nos entregando organicamente às ações em cena - e ora se tornava cúmplice das criações, a tal ponto que parecia que ela própria vivia cada movimento, gesto ou ação, mesmo se mantendo na tradicional posição sentada com a coluna arqueada pra frente, braços apoiando o peso do corpo nos joelhos. O jogo de handebol sobre as "pernas de pau" ganhava outra energia quando ela vibrava, sentada na escadaria, com cada lance. Eita torcedora animada que "cantava" as jogadas e gargalhava com nossas trapaças e presepadas. Será? As imagens podem trair. As recordações podem trair... Pendurado numa corda atada ao fundo, e no centro do palco, do tearo Waldemar Henrique eu tento recitar alguns poemas, num dos momentos de maior tensão dramática da montagem teatral: faço Macunaíma adulto e ele acaba de perder o filho e a mulher. Ela me observa, sentada das arquibancadas do teatro, choramingar uns versos decorados (não lembro de quem); o anti-herói de Mário de Andrade está extremamente triste e o desejo dela era retratar esse sofrimento de modo poético, mas sei que não levo o menor jeito com esse tipo de poesia declamada. Ela deixa escapar um suspiro forte de desalento e a decepção está estampada em seus olhos. No dia seguinte apresento minha própria poesia encarnada em urros vociferantes de dor: esmurro o peito com golpes ininterruptos, crescentes e agressivos... sintonizo as ações na dor de um Macunaíma-Jurunense que conhece e vive de perto o processo de expropriação cultural do bairro, dentre outras mazelas e questões sociais. Os olhos delas, agora, estão estarrecidos. Será? As imagens podem trair. As reminiscências podem trair...

Todos esses delírios/lembranças são dissipados quando aquele corpo/lembrança esparramado no chão ganha uma segunda pele, ou melhor um segundo corpo que carrega uma segunda pele, figura que será responsável por dar anima e penetrar as camadas que meus olhos, até então, não haviam alcançado. A jornada vai começar - na verdade, pra mim, ela já havia começado desde o primeiro encontro com ela no chão - e a bordo do carro de Dioniso apenas alguns garrafões plásticos de tamanhos diversos.

Antes, porém, uma advertência importante: "- Eu não sou gorda! Isso não é um teatro (edifício teatral)! E isso não são bancos". É o que nos informa a atuante que logo se enreda no jogo do desnudamento teatral. Mas ela se desnuda? Ela precisa se desnudar? Quem se mostra e quem se oculta nas camadas sobrepostas de pele, histórias e depoimentos pessoais?

Ela já deu a dica e se veste pela segunda - ou terceira - vez para que o jogo se ajuste pela lente de quem conta sem se confundir com a persona principal da fábula que é contada. Será? Até que ponto o pacto ficcional estabelecido no começo da apresentação é capaz de assegurar o distanciamento épico quando figurino, dramaturgia, expressividade psicofísica - gestos, ações, movimentos e trejeitos - e a própria encenação, a meu ver, se voltam para uma criação/atuação mimética e, por conseguinte, catártica? Quem vejo em cena: a atuante (Andréa Flores) ou a personalidade retratada (Wlad Lima)? Ou melhor: quem devo ver em cena para que as situações dramáticas evocadas me co(mova) para algum lugar?

Conheço ambas. Da primeira fui professor (2007) e atualmente sou colega de trabalho na mesma instituição de ensino. Da segunda fui aluno (1999-2000) e atualmente também compartilho o exercício da docência na mesma instituição de ensino. Tive oportunidade de testemunhar a veia cômica de Andréa ainda nos tempos que trabalhei como professor substituto na ETDUFPA (2006/2007). Na ocasião, eu e Marton Maués dirigimos Nossoqorposantoqorposantonossosantonossoqorpo, resultado da prática de montagem do primeiro ano do curso técnico de ator de 2007. E nesse trabalho - que tomou como indutor de criação para os atuantes as "monomanias" do autor gaúcho, José Joaquim de Campos Leão, mais conhecido e autointitulado Qorpo Santo, além é claro de algumas peças de sua autoria - Andréa se divertia e nos divertia, por mais de uma hora, com as inúmeras possibilidades de brincar com sua monomania de cena: "- Olha aí! Limpa aí!".

Desde então, o interesse da atuante pelo cômico enveredou pelas pesquisas em palhaçaria e, recentemente (maio de 2019), defendeu sua tese de doutoramento intitulada "Curupirá: uma poética cênica cartográfica entre comicidades ameríndias na Amazônia". E, pra mim, isso é uma pista importante que guiou minha recepção de mEU pOEMA iMUNDO: é uma atuante cômica que vive em cena as histórias - delírios criativos, trabalho, crises, problemas de saúde, prazeres, dramas, - de vida de uma mulher gorda.

No entanto, não me refiro a uma atuação cômica estabelecida por meio do exagero, do grotesco ou mesmo da bufonaria, pois, embora o texto de apresentação da montagem teatral nos convide a presenciar "uma bufa amazônida entre histórias atravessadas por risos ácidos, de uma existência insistente, pesada, descomunal e potente" a atuação de Andréa, a meu ver, se mostra como uma paródia em homenagem a Wlad. Talvez, por isso, ela me ofereça uma imitação verossímil, estabelecida numa pesquisa atenta aos modos de ser - andar, falar, entonar a voz, olhar, calar, sentar, rir, etc. - da própria Wlad.

Desse modo, observo a atuação cômica de Andréa estabelecida nos limites da própria realidade, habilmente explorada por ela a partir da simbiose que faz ao manipular o figurino criado por Grazi Ribeiro. Observo então, que o distanciamento épico - sugerido no pacto ficcional apresentado no início - se vê comprometido na medida em que o processo de identificação é acionado em cena: aos meus olhos, Andréa se con(funde) com a Wlad em cena; a paródia se envereda pelo drama. E nesse jogo entre dois elementos díspares me sinto equidistante da emoção e da reflexão.

Não quero dizer com isso que minha recepção da montagem tenha sido comprometida ou pautada pela indiferença - o parágrafo inicial dessa crítica demonstra exatamente o contrário -, mas sim que minha percepção se mantém contida e desorientada sem saber ao certo se a montagem avança para uma reflexão crítica mordaz ou para o riso leve, doce e suave proveniente do reconhecimento dos trejeitos da Wlad colocados em cena. É claro que uma coisa não exclui necessariamente a outra, mas sim que eu não alcancei, nesta montagem, o dispositivo que proporciona uma dialética entre ambos. E então, não sei para que lugar me (co)mover. Me sinto nas beiradas. Fico desassossegado.

Talvez nisso resida a "imundice" desse "poema imundo": me proporcionar uma experiência que teste minha capacidade de apreensão das coisas por um lugar de alteridade marginal, subterrânea, underground, subversiva, transgressora. E pra que isso ocorra é preciso penetrar em camadas: de pele, de vida, de solidão, de delírios criativos... mas também ultrapassar as camadas formais da linguagem teatral para apreender a vida em sua dimensão artaudiana. Falo, neste caso, da crueldade, do teatro da crueldade tal como concebido por Antonin Artaud, ator, poeta e pensador francês que teve o corpo invadido, violado e torturado em aproximadamente sessenta sessões de eletrochoque utilizadas como tratamento para "cura" de suas insanidades. Por aproximadamente nove anos (1937-1946) de internação forçada em diversos manicômios franceses, lhe tiraram tudo, menos a lucidez que pode ser atestada nos seus escritos pós-internação (1947), como o que retrata a situação de Van Gogh:

Pode-se falar de boa saúde mental de Van Gogh, que toda sua vida apenas assou uma das mãos e, fora disso, limitou-se a cortar a orelha esquerda numa ocasião / num mundo no qual diariamente comem vagina assada com molho verde ou sexo de recém-nascido flagelado e triturado, assim que saem do sexo materno. / E isso não é uma imagem, mas sim um fato abundante e cotidianamente repetido e praticado no mundo todo. (...) pois não é o homem, mas sim o mundo que se tornou anormal. (...) Por isso, uma sociedade infecta inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas, cujas faculdades de adivinhação a incomodavam. (...) Não, Van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de substância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao contrário de toda a pintura de prestígio de sua época, teria sido capaz de perturbar seriamente o conformismo espectral da burguesia do segundo Império e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Félix Faure, assim como os de Napoleão III. / Pois a Pintura de Van Gogh ataca, não um determinado conformismo dos costumes, mas das instituições. E até a natureza exterior, com seus climas, suas marés e suas tormentas equinociais não pode mais manter a mesma gravitação depois da passagem de Van Gogh pela Terra. / Tanto mais razão para, no plano social, as instituições se decomporem e a medicina parecer um hediondo e imprestável cadáver que declara louco a Van Gogh. / Diante da lucidez ativa de Van Gogh, a psiquiatria nada mais é que um antro de gorilas obcecados e perseguidos que só dispõem de uma ridícula terminologia para aplacar os mais espantosos estados de angústia e asfixia humana. (...) / Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras. / Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis. / Nesse caso, a reclusão não é sua única arma e a conspiração dos homens tem outros meios para triunfar sobre as vontades que deseja esmagar. (...) / Assim foi que houve feitiços coletivos nos casos de Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard, Hölderlin, Coleridge, / e também no caso de Van Gogh. (...) / Diante dessa sordidez unânime que de um lado se baseia no sexo e de outro na missa e outros ritos psíquicos, não há delírio em passear à noite com um chapéu coroado por doze velas para pintar uma paisagem natural; / pois como faria Van Gogh para iluminar-se, como tão bem assinalou outro dia nosso amigo, o ator Roger Blin? / Quanto à mão assada, trata-se de heroísmo puro e simples; quanto a orelha cortada, pura lógica direta, e repito, / um mundo que, cada vez mais, noite e dia, come o incomível para fazer sua maléfica vontade alcançar seus objetivos / não tem outra alternativa nessa questão a não ser calar a boca. (1986, p. 132-3-4)                

Essa foi a resposta de Nanaqui - seu apelido de infância - a um psiquiatra que retratou clinicamente Van Gogh como um "degenerado", em artigo publicado no jornal Arts em fevereiro de 1947. Sua resposta, publicada em setembro do mesmo ano, sob o título "Van Gogh: o suicidado pelo sociedade", lhe rendeu o prêmio Sainte-Beuve, principal premiação para a categoria de ensaios literários na França. A trágica ironia disso é que seu corpo - frágil desde a infância - literalmente definhava depois das severas intervenções clínicas que sofreu no período de internação forçada nos manicômios franceses. Seus escritos manifestam, portanto, uma lucidez en(corpo)rada, um conhecimento en(corpo)rado, uma sabedoria en(corpo)rada atravessada por dor, humilhações, alienação, marginalização, aviltamentos, desprezos, incompreensões, tristezas... mas também por prazeres, desejos, alegrias, sonhos, ímpetos, fúria... trata-se, a meu ver, da mesma espécie de conhecimento en(corpo)rado que atravessa a trajetória de Wlad e que nos é compartilhado em cena por Andréa.

Esse me parece ser o grande desafio da atuante: colocar em cena o conhecimento que está irremediavelmente en(corpo)rado na trajetória de Wlad. E, desse modo, a invenção de uma poética da crueldade continua sendo atual e muito necessária, pois, como nos lembra Artaud "está na lógica anatômica do homem moderno nunca ter podido viver, nunca ter podido pensar em viver, a não ser como possuído". (Ibidem, p.135) Pensadores do teatro como Artaud e Wlad insistem em provar o contrário.

Evoé.

22 de fevereiro de 2020. 

[1] Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.  

Ficha Técnica:

Montagem:

mEU pOEMA iMUNDO

Equipe de Criação:

Performance:

aNDRÉA fLORES.

Encenação e Dramaturgia:

wLAD LiMA. 

Iluminação:

iARA sOUZA.

Figurino:

gRAZI rIBEIRO.

Fotografia e Design Gráfico:

dANIELLE cASCAES. 

Elementos Cenográficos e Layout da Fachada:

bRUTUS dESENHADORES.

Assessoria de Imprensa:

LeNISE oLIVEIRA.

Direção Cênica e Sonoplastia:

LeOCI mEDEIROS.