Uma crítica sem título (isto não é um título.) – Por Edson Fernando.

05/07/2018

Performance Literomusical: Um homem sem títulos

Realização: Pé de Vento Produções.

Edson Fernando[1]

O experimentalismo das montagens teatrais na cidade de Belém do Pará é uma das características que marcam boa parte da nossa produção local. Em outra ocasião (ver crítica "Um desejo sóbrio" - Fevereiro/2018), já tive oportunidade de compartilhar minha impressão sobre o desejo desvairado de revolução da linguagem teatral e desconstrução dos cânones clássicos da dramaturgia e encenação propostos em vários trabalhos produzidos na cidade. O vírus da vanguarda tresloucada parece acometer principalmente os novos grupos e os jovens atuantes que investem toda energia para revolucionar o mundo das artes cênicas. Naturalmente, também passei por essa fase e soltei meus gritos de injúria direcionados à tradição do teatro ocidental, oportunidade na qual quase coloquei fogo (literalmente) numa sala de apresentação, por ocasião da montagem Quando a musica terminar...; o pensamento flamejante do francês, Antonin Artaud, foi o principal combustível de uma das montagens que considero mais ousadas de minha trajetória artística.

No entanto, quando não se tem sequer o título da montagem teatral, tudo se passa com muito mais tranquilidade e menos cobranças. Leonel Ferreira é Um homem sem títulos, um artista sem pretensão de revolucionar a linguagem teatral ou de provocar tensões entre os elementos da encenação. É bem verdade que o título grandiloquente que acompanha sua obra, isto é, "Performance Literomusical", me leva a pensar sobre o desejo do artista em transitar e, por conseguinte, experimentar literatura, música, performance e teatro. E a experimentação entre estas áreas afins existe de fato, mas se passa com muita naturalidade e sem a pretensão de ser "moderninha".

O elemento chave dessa alquimia que integra textos poéticos, canções de amor e uma narrativa com depoimentos pessoais do artista em arcabouço épico, a meu ver, é o desempenho descontraído, informal e absolutamente casual de Leonel em cena. E para ser justo preciso dizer também que Diego La Percussa e Thales Branche - que se incorporam a cena - ao se apresentarem com a mesma casualidade e espontaneidade do protagonista, mas na integridade de sua condição de musicistas, dão ao palco o contorno daquilo que a montagem pretende compartilhar com a plateia, ou seja: poesia, música e teatro.

Assim constituída, a montagem mergulha na dimensão da poesia literária quando opera com os textos poéticos; mergulha na dimensão musical quando opera com as canções sobre o amor e sobre a vida; e mergulha na dimensão da Performance quando opera com a narrativa que borra as margens entre vida e arte.

Operando como uma força centrípeta, Leonel equaciona todos os elementos de sua alquimia litero-musical com equilíbrio e, sobretudo, deixando transbordar seu extremo prazer por estar em cena. O caráter pessoal da obra, a meu ver, fica evidente na medida em que consigo perceber o estado de arrebatamento do artista por realizar e compartilhar sua obra: um homem sem títulos, sem grana, sem pretensões, sem edital de fomento à cultura, mas extremamente feliz em cena.

Sem fazer firulas desnecessárias, a encenação proposta me entrega um atuante que declama poesia, canta e narra seus medos e ambições artísticas, dentre outras coisas. Tudo parece menos complexo e muito mais acessível quando percebido pela lente da simplicidade que me é oferecida pela montagem. Leonel escolhe e escuta os seus "bolachões", recita poemas de seus poetas preferidos - Max Martins, Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hilst, Fernando Pessoa... - ensaia a escrita de seus próprios poemas e canta com o entusiasmo de um Sátiro. O ambiente criado é agradável e me envolve de um modo tão natural que em determinados momentos me sinto encorajado a subir ao palco e arriscar umas canções ao lado de Leo - para o bem de todos, não houve nenhum tipo de interação com a plateia que permitisse esse tipo de sandice.

A crise criativa do autor, embora seja o mote da montagem, assinala o paradoxo pelo qual a obra me provoca reflexões sobre a arte e sobre a vida: quanto mais o título se esvai na cabeça do autor, mais a obra se torna densa e capaz de tocar a vida. Os títulos se esvaem e a vida resplandece.

Isso me leva a pensar que um homem não precisa de "títulos", uma obra não precisa se definir conceitualmente, um artista não precisa se enquadrar em categorias ou definições pré-estabelecidas. Embora todas as operações teoréticas se passem dialética e naturalmente na urdidura de um processo criativo, o pensamento que aparta teoria e prática tende a privilegiar a primeira em detrimento da última - o "título" se sobrepondo a "coisa". Então, se desbotarmos os "títulos", talvez haja chance para revitalizarmos a dialética natural (teoria/prática) presente nos processos de criação. Assim, se por ventura incorro numa tentativa de dizer o que a obra é ou deixa de ser, isso ocorre simplesmente por desejo de compartilhar por onde minha percepção fez contato com a obra e não para situá-la numa taxonomia das artes cênicas.

Ao desbotar os títulos, as categorias, as classificações, os conceitos, as normas, os valores, talvez possamos reinventar um modo mais agradável de compartilhar experiências no mundo. Ressalto que digo "desbotar" e não "aniquilar" os títulos, pois se assim o fizesse meu pensamento cairia na armadilha do dualismo. O problema é sempre saber equacionar os polos que regem nosso estar no mundo. Por isso, me parece que o ato de desbotar os títulos traz consigo uma responsabilidade ética: a possibilidade de redimensionar as relações humanas.

Exercito, então, minha reflexão para os títulos acadêmicos: servem a quem? Prestam-se ao quê? Constituem uma teia de produção de conhecimento voltada ao quê? Estruturam-se numa lógica de Saber/Poder que atende aos interesses de quem? O quanto de humanidade é capaz de coexistir nos títulos dos especialistas, mestres e doutores que arrotam intelectualidades pelos corredores da academia?

Mas se desbotarmos esses títulos acadêmicos talvez sejamos capazes de perceber o óbvio: a produção do conhecimento só faz sentido quando se coloca a serviço da humanidade. Um doutor, mestre ou especialista sem a capacidade/sensibilidade para articular sua produção de conhecimento com a vida e conjuntura de sua sociedade, esqueceu que algum dia também foi um ser humano. É preciso desbotar o título para deixar resplandecer a pessoa.

Exercito minha reflexão, agora, para o título de eleitor: serve a quem? Qual a lógica que opera por trás de nossa democracia representativa? A quem interessa nos fazer acreditar que somos os responsáveis pelos rumos do país através do simples ato de votar? Que classe de políticos se perpetua no poder ao nos manter como eleitores obrigatórios? Que tipo de política se desenvolve no Congresso Nacional, Senado Federal e Assembleias Legislativas por todo o Brasil quando o mito do "voto democrático" nos faz acreditar que nossa única responsabilidade é escolher os representantes do "povo"? Qual o nível de participação política efetiva do eleitor num regime de democracia representativa como a brasileira? Até quando o pensamento do escritor uruguaio, Eduardo Galeano, nos servirá como uma luva: "A liberdade de eleições permite que você escolha o molho com o qual será devorado".

Mas se desbotarmos o título de eleitor talvez sejamos capazes de perceber o óbvio: qualquer regime democrático se fragiliza quando a cidadania de um povo se reduz ao título de eleitor. É preciso desbotar o título de eleitor para nos darmos conta da necessidade de nos reconhecermos como membros de uma sociedade civil, com direitos e deveres, políticos e sociais, e a efetiva participação na vida política do estado brasileiro. É preciso desbotar o titulo de eleitor para percebermos que votar é [um] ato de cidadania e não [o] ato de cidadania.

Neste sentido, quando declaro publicamente que voto nulo desde as eleições de 1998, não estou me esquivando das minhas responsabilidades sociais ou em outras palavras: "não estou lavando as mãos". Estou simplesmente me posicionando de modo a não compactuar com as regras nefastas do jogo político partidário vigente. E mais que isso: tenho consciência de que a luta por direitos e conquistas sociais se estabelece no enfrentamento com o estado por meio da militância nos movimentos sociais organizados.

Exercito minha reflexão para o título de crítico teatral: a quem direciono minhas considerações sobre as montagens teatrais? Sob qual moldura me interessa inserir o Tribuna do Cretino? Que tipo de crítica teatral interessa ao estado da arte voltado ao teatro contemporâneo produzido em nossa cidade? Quem se encontra autorizado a escrever críticas sobre as montagens teatrais produzidas em Belém do Pará? Quem se encontra encorajado a escrever e tornar públicas tais críticas teatrais?

Mas se desbotarmos o título de crítico teatral talvez possamos estabelecer e exercitar novos modos de apreensão das montagens teatrais. É preciso desbotar o título de crítico teatral e de crítica teatral para desenvolvermos um pensamento sobre a cena produzida na cidade, mas, sobretudo, um pensamento que se instaura [a partir] da cena. É preciso desbotar a crítica teatral para que estética e ética se reencontrem na apreensão escrita da cena.

Feliz é o Leonel Ferreira por se considerar Um homem sem títulos, pois ele consegue realizar seus sonhos com a simplicidade de uma criança, a tenacidade de um sábio e com o espírito vigoroso de um atleta afetivo. Desejo que seus "Pés de Vento" continuem a desbotar os títulos que arrefecem a vida em nossa cidade.

OBS: Parafraseando René Magritte: "Isso não é uma crítica teatral".

5 de Julho de 2018.

[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do projeto de extensão TRIBUNA DO CRETINO.

Ficha Técnica:

Um homem sem títulos

Direção Geral, Dramaturgia e Atuação:

Leonel Ferreira

Direção Musical:

Thales Branche

Percussão:

Diego La Percussa

Iluminação:

Thiago Ferradaes
Fotografia:

Luxã Nautilho Spielberg

Apoio:

Núcleo de Conexões Ná Figueiredo.
Realização:

Pé de Vento Produções.