ZECAS, CLÁUDIAS, DANDARAS, MARIELLES, ÁGATHAS - Por karimme Silva
Montagem teatral: Zeca de uma Cesta só.
Montagem: Coletivo Zecas de Teatro.
Karimme Silva[1]
"Jéssica, não chame a patroa de Bárbara. É Dona Bárbara." - Val
A montagem teatral Zeca de Uma Cesta Só, realizada pelo Coletivo Zecas de Teatro (nome do grupo em alusão à peça) sempre chamou a minha atenção. Desde a primeira vez na qual foi realizada, em 2014, ainda como resultado do Grupo de Teatro Universitário - GTU, eu percebia a montagem como algo além. Muito além do espaço teatro ou do contexto cênico. Claro que este é um critério subjetivo, mas muitos motivos concretos levaram à tal percepção. Indo na contramão do chamado teatro de entretenimento ou das pautas ficcionais, a montagem aborda uma série de questões que permanecem atuais. Questões que se repetem, na maioria dos lares de famílias pobres, que lutam por uma vida digna, que se sujeitam a preconceitos e humilhações para terem direito (na verdade, um dever do Estado) de possuírem o básico. As situações enfrentadas pela personagem principal são as mesmas de muitas mulheres reais. Mulher pobre, negra, periférica, a protagonista mantém-se firme mesmo diante de todos os percalços, ainda que guarde a dor da mãe que perde um filho. Interpretada por Brenda Lima, que sustenta toda a potência da personagem desde sua primeira montagem, Zeca é um espelho, um retrato do gigante abismo social recorrente no Brasil. Um abismo onde patrões e empregados estão em lados e ambientes opostos, onde diferentes estruturas sociais se confrontam. Tal como no filme Que Horas Ela Volta?, Zeca é um espelho de Val, a mulher que sai do interior para tentar uma vida melhor trabalhando como empregada de uma família rica. Val sabe o "lugar dela", assim como Zeca. Este "lugar" dentro da enorme desigualdade e das relações de poder. Zeca é um espelho para muitos; para os mais ricos, torna-se alegoria, função, objeto.
A primeira parte da montagem traz também a figura de Dinda, mantendo-se como o alívio cômico. Com seus trejeitos exagerados, Dinda configura-se como oposta a Zeca; enquanto personagem, é encarregada de diminuir os momentos de tensão que ainda virão. Este espetáculo não é leve, mas a presença de Dinda torna-o maleável.
Há que se destacar a estrutura narrativa que trabalha com a ideia da repetição: todos os dias de Zeca são os mesmos, com a busca pelas cestas básicas, pelo trabalho, por uma condição melhor. É como se reviver cada dia fosse uma forma de firmar o seu espaço em um contexto social desigual, excludente, preconceituoso.
A cena que rememora a infância de Zeca traz outro tom. O instrumental de Chico Buarque ilustra uma ideia lúdica: crianças brincam, sorriem, é a hora de respirar um pouco. Mas este ar puro logo se torna fumaça ao colocar a menina Zeca em despedida dos amigos e da infância, se despedindo também de suas próprias vontades e sonhos. Zeca cresce da pior forma possível e aprende que "pobre não sonha", um retrato de uma sociedade onde direitos são a todo momento retirados e onde muitas infâncias, através dos estupros, são roubadas. Realidade cruel, mas infelizmente ainda muito presente nos interiores, não precisamos ir muito longe para perceber. Patrões que exploram seus empregados de todas as formas possíveis e inimagináveis. Zeca escancara esse abismo. O espetáculo intercala as cenas ficcionais com textos e o vídeo extremamente forte de Cláudia Silva Ferreira, que em 2014 teve seu corpo cruelmente arrastado por uma viatura da polícia do RJ. A mesma polícia que segue matando pessoas negras, pobres, crianças, moradores de favela e confirmando que relações de poder na maioria das vezes resumem cidadãos ao nada. Zeca é Cláudia, é Dandara, é Marielle, é Ágatha.
Acham que quem mora na comunidade é bandido.
Tratam a gente como se fôssemos uma carne descartável. (Jussara, irmã de Cláudia)
Eles arrastaram minha mãe como se fosse um saco
e a jogaram para dentro do camburão como um animal. (Thaís, filha de Cláudia)
A encenação também oferece alternativas ao público. Parece querer criar um alívio em meio à morte de Zeca, mas na verdade traz opções que convergem para um desfecho em comum: a morte. Dos menos favorecidos, dos mais necessitados, daqueles que são violentados pelo Estado e enfraquecidos pela fome. De quem, para uma sociedade racista e desigual, deve ser sempre inferior. Zeca esfrega a realidade bem na nossa cara, confirmando os noticiários, as mortes violentas, a degradação humana diante das instituições ditas de segurança. Segurança, pra quem? De quem tantas Zecas podem se proteger sendo que elas mesmas acabam sendo acusadas, humilhadas, torturadas, mortas? Pra quem pedir ajuda?
Zeca de Uma Cesta Só não fala de política, É POLÍTICA. Não usa a panfletagem para sustentar seu discurso, os vídeos e falas dos personagens (destaque para o intérprete Renan Coelho, que confronta o público de forma muito forte e real) cumprem com maestria esta função. A montagem joga com o público no intuito de confrontá-lo, de mostrar que mesmo dentro do espaço teatro, as relações de poder são recorrentes; questiona-se qual o público que frequenta o teatro. Amigos? Conhecidos? Familiares? Questiona-se exatamente qual o alcance deste público, que lota filas e teatros para outras montagens (principalmente quando vêm de fora), mas torna-se limitado e vazio quando se trata de "peças menores". No entanto, e com tudo isso, Zeca é grande. Maior até do que se pode prever e imaginar.
Digo, sem titubear, que Zeca foi a melhor montagem já realizada dentro do projeto GTU. Um espetáculo atemporal. Forte em seu sentido mais amplo, que ressignifica seus contextos, mas que nunca se perde. Enquanto existirem pessoas pobres morrendo, sempre haverão Zecas à margem. O espetáculo é um recorte de um lugar injusto, racista e absurdo. Um recorte triste e verdadeiro do Brasil atual.
P.s.: as estruturas de poder podem perpetuar-se nos mais diversos ambientes, incluindo na prática a ideia do espaço teatro. É muito fácil para o público julgar quando uma montagem, qual seja, possui problemas técnicos. Mas é importantíssimo entender que também se trata de uma estrutura social, onde "quem tem mais recursos, pode mais", onde os grupos precisam depender de estruturas que não dispõem o mínimo para que suas montagens sejam realizadas da forma adequada. Por que as montagens de fora dispõem de estruturas e aparatos que os grupos daqui não podem ter o mesmo acesso - e por conseguinte, por que o público não pode compreender da mesma forma? Enquanto o público se gasta horas de espera e um valor alto para montagens de forma, não se pode compreender que alguns espaços não oferecem o básico para que grupos daqui possam exercer o seu trabalho? Fica aqui o questionamento e também os meus parabéns ao Zecas Coletivo de Teatro, que se mostra resistente, conciso e forte em retornar com esse espetáculo forte, atual, necessário. A Gisele Guedes com toda certeza teria (ainda mais) orgulho de vocês. Eu, enquanto público, me sinto muito agradecida de poder assistir mais uma vez essa obra, que se ressignifica enquanto força e resistência. Obrigado por permitirem isso.
24 de setembro de 2019.
[1]Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA, artista-pesquisadora e mestranda do programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/UFPA).
Montagem teatral:
Zeca de Uma Cesta Só
Montagem:
Zecas Coletivo de Teatro
Elenco:
Assucena Pereira
Brenda Lima
Carolina Monteiro
Isabella Valentina
Leticia Moreira
Lenise Oliveira
Lucas Del Corrêa
Miller Alcântara
Penélope Lima
Renan Coelho
Robson Clausberg
Ruber Sarmento
Victória Souza
Wagner Ratis
Victor Sezenem
Direção:
Paulo César Jr
Assistente de direção:
Assucena Pereira
Encenação:
Leandro Ferreira
Dramatugia:
Amanda Carneiro, Leandro Ferreira, Pablo Pina e Rodrigo Pimentel
Iluminação:
Bolyvar Melo
Cenografia:
Assucena Pereira, Bolyvar Melo e Ruber Sarmento
Assessoria de imprensa:
Lucas Del Corrêa
Artes gráficas:
Wan Aleixo
Fotografia:
Letícia Moreira
Produção:
Ruber Sarmento
Realização:
Zecas Coletivo de Teatro
Apoio:
Teatro Universitário Claudio Barradas e São Folhas