O gênio de um desejo só - Por Arthur Ribeiro

24/08/2018

Montagem Musical: O Gênio dos Musicais (Folhetim Produções Artísticas)

Publicada originalmente no blog O Teatro Como Ele É .

Disponível no link: https://oteatrocomoelee.wordpress.com/2018/08/24/o-genio-de-um-desejo-so/ 

Arthur Ribeiro[1]

"Por que o Howard?", foi a pergunta que me veio à cabeça quando vi o anúncio de um musical sobre Howard Ashman, uma dúvida intensificada pelo título do espetáculo, O Gênio dos Musicais, alcunha que para mim soava exageradamente espetacular, por vários motivos.

Primeiro, pelo fato, que o próprio musical ressalta, de que a carreira de Howard passou longe de ser uma permanente ascensão, uma brilhante unanimidade, como o título daria a entender. Foi, antes, um misto de sucessos e fracassos que, se alcançou em dado momento o estrelato, não foi apenas pela suposta "genialidade" do produtor e letrista americano, mas pela conjunção de vários fatores, como o contexto de derrocada dos estúdios Disney dos anos 80 e a visão de outros produtores, como Don Hahn e Jeffrey Katzemberg. A respeito desses fatores, aliás, é muito didático para nós, que não temos tradição de musicais biográficos, ver como o espetáculo de Guál Dídimo efetua com sucesso a maximização do primeiro, deixando bem clara a crise financeira da empresa na voz da personagem da produtora que mostra o estúdio a Howard, enquanto minimiza o segundo, ao não se preocupar em apresentar, nem mesmo mencionar, a maior parte dos demais produtores dos estúdios Disney responsáveis pelo sucesso de filmes como A Pequena Sereia e A Bela e a Fera. É uma operação precisa de dramaturgia que serve perfeitamente à delimitação de Ashman como o "gênio" maior por trás das animações, ainda que tal retrato seja questionável diante da história factual.

O segundo aspecto que me fazia problematizar a escolha era a evidência de que, pelo menos entre nós, brasileiros da classe média que assistiram os filmes à época do lançamento, a popularidade das animações nas quais Ashman trabalhou não se devia particularmente ao trabalho dele. Ora, a principal colaboração do autor nos filmes eram as letras das canções, e as cópias exibidas no cinema e inseridas nas fitas de vídeo que colecionávamos continham em geral a versão dublada em português dos filmes, nas quais as composições de Howard eram substituídas por versões cujo conteúdo (e qualidade) nem sempre correspondiam às originais. Basta lembrar do famoso caso de "Part of your world", de A Pequena Sereia, em que um verso delicioso, cheio de assonâncias e rimas internas, como "wouldn't I love, love to explore that shore above" virava o martelante "quero morar naquele mundo cheio de ar", entre outras aberrações. Na prática, o fascínio exercido por filmes como esse no Brasil se deveu mais aos roteiros bem acabados, à evolução tecnológica das animações e, a meu ver, às melodias e trilhas sonoras, felizmente preservadas como as originais. Nesse ponto, o musical apresentado no Waldemar Henrique parece assumir a contradição, já que as músicas cantadas estão todas na versão em português; é como se a exaltação a Howard derivasse não de uma fruição atenta da obra, mas de uma ligação meio mistificada entre a imagem do compositor e a recepção das canções, ligação, porém, necessária para gerar no ouvinte um senso afetivo, ainda que difuso. Mas vivemos tempos de Facebook, no qual as curtidas e compartilhamentos precedem a leitura atenta, e o ritmo dinâmico e confortável do espetáculo nos faz prescindir de elucubrações desse tipo. De qualquer forma, me parecia esquisito, tanto eticamente quanto afetivamente, imputar a Ashman, de forma tão personalista, um destaque maior do que, por exemplo, o de Alan Menken, responsável pelas melodias e trilhas sonoras dos mesmos filmes, ou Tim Rice, cujo trabalho, por exemplo, em Aladdin, O Rei Leão e outras obras, se não superou, ao menos igualou os feitos de Howard. Por que, então, o Howard?

O espetáculo não demora a nos dar essa resposta, assentada principalmente na qualidade da construção dramatúrgica de Guál Dídimo, já apontada na crítica[2] ao espetáculo Paixão Fosca. Em O Gênio dos Musicais, diálogos ágeis e limpos apresentam desde o início e com clareza o tom do personagem de Howard, dividido entre ambições artísticas, traumas familiares e impulsos sexuais e afetivos. Assim, fica evidente que o protagonismo dado ao compositor no espetáculo não se deve apenas aos valores discutidos acima, mas principalmente às camadas psicológicas de sua biografia, que, melhor do que a de outros artistas, providencia ao espetáculo a densidade necessária a um dos pontos do discurso por ele mesmo defendido: um protesto contra o preconceito e a discriminação sofrida pelas pessoas homossexuais. Dessa perspectiva, é bonito o encontro com Cazuza e a composição de "Codinome Beija-Flor", uma parte relativamente discreta da carreira de Howard, ganhar destaque no espetáculo; o que poderia ser visto como um apelo meio rasteiro a uma plateia brasileira necessitada de identificação torna-se um retrato simbólico da singularidade de dois artistas cujo comportamento sexual, e, em última instância, a própria identidade, foram marginalizados e estigmatizados pela AIDS.

Pela força de cenas como essa, é lamentável notar que outras ressonâncias da temática homoafetiva presentes na vida de Howard Ashman são retratadas sem contundência, ou mesmo sistematicamente ignoradas, pelo espetáculo. Uma delas, já notada pelo Hudson Andrade, em crítica publicada na Tribuna do Cretino[3], é o relacionamento entre Howard e Fred, o namorado-marido que o acompanha até o estrelato. Apresentada em um diálogo cheio de um duplo sentido muito interessante, a relação entre os dois promete, no início, acender uma chama de realismo na peça, levando para os corpos a reação contra o preconceito. Mas é uma expectativa frustrada: o namoro vai sendo retratado com pudor excessivo, disfarçando por um contato físico estéril a fuga de qualquer insinuação mais íntima. Parece, assim, mais um testemunho de covardia, incompreensível diante do fato de que o teatro paraense já teve inúmeros espetáculos pautados na afirmação explícita da homossexualidade, e de que mesmo a cultura de massa já vem há anos permeabilizando-se a esse debate.

Ainda sobre o mesmo tema, outros detalhes poderiam se juntar à análise iniciada pelo Hudson: o Howard do Gênio dos Musicais frequenta as sociais de madames racistas e homofóbicas, retratadas caricaturalmente na tentativa de apontar o absurdo de seu discurso; mas nada se fala sobre as festas gays de Nova York, que o Howard real notoriamente frequentava e se realizava artística e sexualmente (a inspiração da vilã de A Pequena Sereia em uma famosa drag queen americana, por exemplo, é apagada). A epidemia de AIDS da passagem dos anos 80 para os 90, que produziu o discurso do "câncer gay" e fez o Howard real acompanhar dolorosamente a morte de vários amigos, até ser ele mesmo vitimado, é quase apagada da dramaturgia, que dá a impressão de que Ashman era um caso isolado de HIV positivo, e não se mostra o discurso explícito feito por seu companheiro pelo respeito e amparo aos portadores da doença, quando do recebimento póstumo de seu segundo Oscar. O Howard personagem, enfim, se reconcilia com a mãe na última cena, como se o espetáculo supusesse ou propusesse a superação da discriminação contra os gays; me parece um estilo excessivamente ingênuo de exigir legitimidade, especialmente no atual contexto político brasileiro, em que pautas identitárias, longe de serem consensuais, são os principais epicentros de discursos de ódio. Um Howard que vivesse no mainstream midiático de hoje talvez permanecesse com pouca liberdade para manifestar sua orientação sexual.

Para concluir: da mesma forma que, em Paixão Fosca, Guál Dídimo atingia uma arte excelente quando investia nas opções cênicas mais tradicionais, nos diálogos clássicos e na direção de ator, no Gênio dos Musicaisé também nas formas mais conservadoras de construção que ele tem seu mérito. Contudo, ao contrário de Paixão Fosca, que era um drama com pouco teor sociológico, o tributo a Howard Ashman se imiscui em temas que já ganharam teor político, e, por isso, os limites do conservadorismo cênico ficam mais evidentes, um ponto no qual outros espetáculos da cidade, como I(Mundo) Ubu, já estão mais avançados. Toda a tessitura da ideia romântica do "sonho" de Howard Ashman é feita com maestria pelo diretor, e o melhor exemplo é a inserção da canção do filme Cinderella, um recurso que ao mesmo tempo inaugura dramaturgicamente a entrada de Ashman nos Estúdios Disney e se encaixa no desdobramento psicológico do personagem. Porém, essa dificuldade de tematizar os pontos mais "sérios" que se insinuam acabam tornando O Gênio dos Musicais um espetáculo de interpretações corretas, vozes consistentes, coreografias alegres, enfim, de ótimo entretenimento, mas de ideologia confusa, manifestos envergonhados, provocações natimortas. Um gênio que promete muitos desejos, mas acaba cumprindo só um.

24 de Agosto de 2018.

[1] Mestre em Letras, ator e professor de Português.

[2] Disponível no link: https://oteatrocomoelee.wordpress.com/2014/12/22/as-dubiedades-de-fosca/ 

[3] Disponível no link: https://www.tribunadocretino.com.br/l/algo-vem-vindo-por-hudson-andrade/ 

Ficha Técnica:

O Gênio dos Musicais - um tributo a Howard Ashman

Elenco:

Vinícius Fleury, Vagner Mendes, Yuri Avelar,

Tainah Leite, Ayrsha Azevedo e Tárcila Mendes.

Desenho de Luz:

Breno Monteiro

Desenho de som:

Felipe Fonseca

Fotos:

Felipe Thuan

Marketing digital: 

Tina Sâmia

Apoio:

Tiago Fleury, Academia de Música e Tecnologia, Thuan produções

Produção:

Folhetim Produções Culturais

Dramaturgia e Direção:

Guál Dídimo